Um par de contradições

Há pouco mais de três anos participei numa das provas mais educativas da minha vida de crítico de vinhos. Uma prova de vinhos velhos do Dão que acabou por fundamentar um somatório de ensinamentos que levantaram diversas questões práticas e filosóficas. Uma prova de vinhos velhos do Dão, alicerçada maioritariamente nos vinhos do Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão (CEN), aqui e ali entrecortados por contribuições de outros produtores do Dão, rótulos de renome como a Real Vinícola, Caves São João, Caves São Domingos, Federação de Viticultores do Dão, Vinícola do Vale do Dão, Caves Velhas, Caves Fundação, UDACA e Quinta da Falorca.

Os brancos iniciais, distendidos entre a colheita 1992 e a colheita 1959, deixaram prontamente um misto de espanto e euforia. As expectativas iniciais pouco elevadas foram largamente superadas face aos resultados brilhantes da prova! Merecedores de louvor eterno estiveram os CEN 1980, 1974, 1964 e 1963, ainda frescos e elegantes, vibrantes e tensos, joviais e entusiasmantes. Porém, apesar da excelência dos brancos e da casta Encruzado que os alimentava, foram os tintos seguintes que proporcionaram as conclusões mais surpreendentes.

Espraiados entre as colheitas 1987 e 1950, os tintos sucediam-se em sequências de desilusão, enfado e tristeza durante as décadas de oitenta e setenta, embora, ditosamente, os vinhos finais tivessem terminado em apoteose! As várias colheitas provadas apadrinharam um sentimento de frustração. Foi com desalento que constatei que as décadas de oitenta e setenta foram anos quase perdidos, com uma abundância de vinhos vazios, taninosos, ocos e terrivelmente magros.

Para eliminar os pecados sobrevieram os vinhos dos anos sessenta e cinquenta, o Quinta da Falorca 1963 e os CEN Touriga Nacional 1963, CEN 1963 e CEN 1958, vinhos que me deixaram simultaneamente extasiado e estupefacto. Todos eles ainda levemente frutados, frescos e elegantes, poderosos e concentrados, intermináveis no final de boca, vinhos notáveis em qualquer parte do mundo!

Como foi curioso descobrir que os vinhos do CEN eram vindimados em Outubro, com uvas em estado quase passa, e que o grau alcoólico destes vinhos, tintos excepcionais e terrivelmente frescos, estacionava entre os 14º a 15º, sem que qualquer dos vinhos o denunciasse no nariz ou boca! E há que acrescentá-lo, será certamente uma coincidência, mas não deixa de ser curioso verificar que os vários vinhos monótonos da década de setenta e oitenta provados na ocasião… raramente se afastaram da faixa politicamente correcta entre os 12º a 13º.

Repisamos continuamente na tecla do álcool, ralhamos com os excessos alcoólicos de alguns vinhos modernos, resmungamos com a cisma da maturação fenólica, garantimos que estes vinhos terão dificuldades em envelhecer… e foram estes mesmos vinhos que, quarenta e cinquenta anos depois, provaram estar mais frescos, mais tensos, mais jovens e com maior potencial de vida. Que contradição com os principais paradigmas da crítica de vinhos moderna!

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4 Comments
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    Rui A Teixeira

    November 4, 2011 at 19:53

    Um artigo muito interessante, pessoalmente já tive oportunidade de aferir a realidade que aqui descreve com alguns brancos do Dão da casta “Encruzado”, mas pena é que estes vinhos que normalmente nos dão, ao fim de tantos anos, tanto prazer em bebe-los, enquanto novos são demasiadamente hostis. Com os tintos, apesar de já ter provado alguns com alguma idade, infelizmente e muito provavelmente estariam enquadrados dentro da faixa dos politicamente correctos, ainda não tive a felicidade de me ter confrontado com a realidade que descreveu.

    Mais uma vez excelente artigo.

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    Rui Falcão

    November 5, 2011 at 08:35

    Bom dia Rui Teixeira, antes de mais muito obrigado pelos comentários.
    Penso que terá tocado num dos pontos essenciais de análise para estes vinhos, e de muitos outros vinhos velhos que hoje valorizamos – como seriam enquanto jovens? Só posso especular, mas muito provavelmente seriam agressivos, acídulos em muitos casos, relativamente verdes e solidamente taninosos, de aproximação arrevesada nos primeiros anos de garrafa. Ora a ideia de produzir hoje vinhos duros e rígidos durante os primeiros anos de vida, vinhos que só o tempo saberá amansar, é uma realidade impensável para qualquer produtor, sob risco de colapso financeiro.
     

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    Valéria Zeferino

    January 18, 2012 at 15:55

    Boa tarde Rui,
    Li com muito interesse, até porque tenho pouca experiência própria, tento aprender com a dos outros, procurando as opiniões diferentes, mas válidas.
    Tenho algumas questões para lhe colocar.
    Esta diferença nas características dos vinhos tintos das décadas 80-70 e 60-50 atribuíu à graduação alcoólica. Poderá existir alguma outra razão? Existe alguma possibilidade de ter um resultado diferente, se estes mesmos vinhos fossem provados 10 anos mais tarde? Porque será que os vinhos franceses antigos envelhecem bem, não tendo o grau alcoólico de 14-15º? Não estou a tentar encontrar uma contradição, mas uma explicação, uma opinião sua. Eu, pessoalmente, gosto de vinhos com o nível de alcoól 13,5º – 14º – 14,5º etc. e noto que os vinhos mais “leves” neste sentido parecem mais aguados, menos pronunciados.
    Muito obrigada,
    Valéria Zeferino

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    Rui Falcão

    January 18, 2012 at 16:15

    Boa tarde Valéria e obrigado pelo comentário.
    Sim, existirão seguramente muitas outras considerações a tomar e o estado de cada um dos vinhos em causa não pode ser imputado apenas ao volume alcoólico. Longe disso! As razões são muitas e muito mais complexas que uma única variável.
    Mas com este artigo quis contestar um dos dogmas da actualidade, os perigos do álcool e dos vinhos de graduação elevada. Quis salientar que no passado já tinham existido alguns vinhos de volume alcoólico elevado, ao contrário do que muitos hoje afirmam com certezas absolutas. E que os vinhos com graduações altas também conseguem envelhecer, desde que proporcionados e bem desenhados, desde que acompanhados por uma acidez igualmente elevada. O factor álcool é apenas mais um de entre os muitos parâmetros que há que analisar e ter em conta. Com este artigo quis chamar a atenção para os fundamentalismos, neste caso do álcool.
     

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