Rui Falcao

Um mundo em ebulição

Até um passado muito recente podíamos afiançar que o mundo do vinho se desenvolvia a um ritmo conservador, avesso a mudanças e defensor da memória e tradição, um mundo preso a costumes que o passado garantia. Hoje porém, também o vinho teve de se submeter à volatilidade da sociedade contemporânea adaptando-se às muitas mudanças e caprichos dos consumidores modernos, adaptando-se à perda de alguns dos mercados tradicionais e à conquista de mercados emergentes que até a um passado muito recente pouco ou nada tinham a ver com o vinho.

Rui FalcaoGoste-se ou não desta nova orgânica universal o que é certo é que o mercado internacional do vinho encontra-se num estado de ebulição e transformação permanente, num estado de euforia colectiva que frequentemente nos passa ao lado dificultando o reconhecimento desta nova realidade. Podemos, ainda que de uma forma muito genérica, afirmar que o mundo global do vinho não conhece o significado da palavra crise e que o crescimento de consumo internacional tem sido imparável e desnorteante.

Segundo os dados estatísticos compilados pelo International Wine and Spirit Research (ISWR) o consumo global de vinho cresceu 2,8% entre 2007 e 2011. De acordo com as perspectivas da mesma instituição está previsto um crescimento de 5,3% de consumo até 2016, número impressionante que prolonga o longo período de crescimento mundial do consumo de vinho. Há no entanto que atender a algumas alterações geoestratégicas do consumo de vinho no mundo, mudanças que corroboram e reforçam aquilo que são as grandes tendências económicas e sociais do mundo… pelo menos tal como o conhecemos na actualidade.

Os países principais protagonistas deste aumento de consumo encontram-se fora da Europa, fora dos mercados tradicionais de vinho, desviando as atenções para países anteriormente pouco considerados e com os quais mantemos uma relação comercial distante, com os quais acusamos falta de protagonismo e défice de imagem. Por estranho que tal possa parecer para muitos o mercado do consumo de vinho, tal como em parte o mercado de produção, deslocou-se definitivamente para países como os Estados Unidos da América, a China, a Rússia… e a Austrália.

A Europa, enredada em infindáveis crises de valores e de identidade, crises financeiras e crises de um mercado anteriormente empolado por consumos excessivos, acusa regressões que consoante países e regiões se revela estagnado ou em franco declínio. É verdade que os valores portugueses de consumo de vinho per capita continuam a ser os mais elevados do mundo, é verdade que a Europa continua a consumir muito vinho, mas a tendência é de queda apressada. O trambolhão chega a ser tão brusco que a queda do consumo de vinho em Espanha durante os últimos cinco anos atingiu o espantoso valor de quase 20%.

O consumo internacional de vinho deslocalizou-se da Europa para países do novo mundo reflectindo a crescente influência económica dos países que compõem o anel em redor do Pacífico. Os Estados Unidos da América transformaram-se no maior mercado de vinhos do mundo enquanto no outro lado do oceano Pacífico, na China, o consumo de vinho continua a crescer a ritmo alucinante com progressos de 142,1% ao longo dos últimos cinco anos. Curiosamente o consumo de vinho na China continua a ser quase insignificante quando comparado com a cerveja, vinho de arroz e bebidas espirituosas, representando pouco mais de 2% do consumo total de bebidas alcoólicas no país. Ao mesmo tempo, e apesar de uma população extremamente reduzida para a dimensão geográfica do país, a Austrália subiu ao grupo dos dez maiores mercados de vinho do mundo realçando o papel fundamental dos países do Pacífico no futuro do vinho.

Também a produção de vinho sofre reviravoltas obrigando ao redesenhar do mapa da produção internacional. À dezena e meia de países produtores tradicionais, incluindo países do novo mundo como aRui Falcao Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Argentina, Chile ou Califórnia, junta-se agora um grupo de países que a maioria dos consumidores internacionais ainda não associa ao vinho mas com os quais já contamos e que teremos de passar a contar ainda mais num futuro muito próximo. Países como a China, que já se apresenta hoje como o quinto maior produtor mundial de vinho, Brasil, Índia, Canadá… ou mesmo Inglaterra, país que com a suavização de temperaturas na região começa a ter uma importância crescente na elaboração de vinhos espumantes.

Para além da reviravolta inevitável na geografia mundial, tanto na produção como no consumo, a transformação do modelo de países tradicionais para países emergentes tem consequências inevitáveis, sobretudo na perda gradual de noções tão europeias e clássicas como terroir, identidade, diversidade, autenticidade ou variabilidade entre colheitas. Conceitos como consistência, previsibilidade, segurança ou homogeneidade passaram a ser juízos fundamentais no vinho dando relevo ao pragmatismo em detrimento de uma expressão mais romântica e teoricamente autêntica de um local, um ano agrícola e uma região.

Uma simplificação e facilitismo que muitos consumidores emergentes agradecem mas que incomoda muitos dos puristas e amantes do vinho europeus que preferem a autenticidade e variabilidade a um produto mais industrializado que em alguns casos se diferencia pouco de outras bebidas alcoólicas padronizadas. Uma mudança de padrões de consumo que convém reconhecer e antecipar para os produtores que se querem manter no activo durante as próximas décadas.

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