Tampa de carica

Se vivêssemos num mundo racional, num mundo lógico e ordenado, um mundo razoável e coerente, muito cambiaria nos nossos hábitos do quotidiano. Quantas decisões seriam alteradas, quantas mudanças seriam abraçadas, quantas resoluções seriam adoptadas? Um mundo assim aparece fantasioso, utópico e irrealizável, presos que estamos a decisões irracionais em nome de um papão cTampa de caricahamado tradição.

Tradição, essa vaca sagrada que desculpa e justifica tanto laxismo, tanta condescendência e vulgaridade. Tradição, palavra arreigada aos costumes do vinho, aos muitos dogmas e doutrinas que povoam o nosso imaginário comum. Tradição, essa sentença autocrata que anula qualquer veleidade de mudança, de aperfeiçoamento, de progresso natural. Sim, o mundo do vinho está cheio de tradições, de embaraços e escolhas irracionais, invariavelmente apoiados no peso da tradição.

Só mesmo a tradição, e a incapacidade social de encarar de frente uma escolha pouco coroada, poderiam impedir que a simples tampa de carica, a mesma tampa que aprisiona garrafas de cervejas e refrigerantes, se possa apresentar como alternativa legítima aos vedantes tradicionais. Tecnicamente, tem tudo a seu favor. É barata, tremendamente eficaz, fiável, duradoura, sólida, de fácil extracção, de aplicação cómoda e resultados garantidos por mais de um século de experiências e utilização. Embora muitos o desconheçam, ela é usada regularmente há décadas, em alguns dos melhores e mais caros vinhos do mundo, na segunda fermentação de todos os champanhes e vinhos espumantes fermentados segundo o método tradicional. Nenhum outro vedante é tão eficaz. Por serem tão evidentes, poucos se atreverão a contestar as qualidades inequívocas da tampa de carica.

Infelizmente, por desdém e sobranceria, por falta de apuro estético, por simples preconceito, poucos se atreveriam a comprar um vinho aferrolhado por tampa de carica. Desventuradamente, mas compreensivelmente, poucos produtores se atreveriam a comercializar os seus vinhos em garrafas vedadas com tampas de carica. Os poucos que se lançaram na temerosa aventura, produtores alemães sobretudo, com Peter Kühn e Querbach em evidência, rapidamente desistiram face ao perturbante desastre comercial.

Mas, quando já se sepultava a tampa de carica no ocaso da história, eis que novos produtores surgem para abonar e vangloriar a opção. Primeiro os produtores italianos de Prosecco, logo seguidos de um ou outro produtor de vinhos espumantes, Moët & Chandon, nas sucursais do novo mundo, incluída! E recebi, há pouco mais de uma semana, o primeiro rosado austríaco vedado com carica, numa apresentação deliberadamente irreverente, estimulante e provocante, desenhada para escandalizar e agravar. Um rosado que longe de querer esconder o vedante, o anuncia de forma desbragada.

Afinal, será que a tradição já não é o que era?

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16 Comments
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    João de Carvalho

    February 28, 2009 at 02:23

    O Domaine des Baumard passou também a utilizar a tampa de rosca em toda a sua gama.

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    Rui Falcão

    February 28, 2009 at 10:49

    João,

    O artigo versa mesmo sobre as tampas de carica, tal como estão retratadas na imagem, não os screwcap

    Abraço,

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    Elizabeth Rato

    February 28, 2009 at 13:28

    Confesso que sou tradicionalista e não consigo associar ao vinho outro tipo de vedante, apenas a rolha de cortiça.
    Da sua experiência e conhecimento acha que a tampa de carica pode ser tão eficaz na evolução ou envelhecimento do vinho em garrafa?

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    Rui Falcão

    February 28, 2009 at 17:07

    Elizabeth,

    Bom, as respostas a este tipo de questões dificilmente poderão ser entendidas como definitivas ou peremptórias.
    Antes de mais, teremos de tentar perceber o significado dos termos “envelhecer em garrafa”. Se com esta nomenclatura estamos a falar dos vinhos tradicionais, dos cerca de 98,9% da produção mundial que é destinada a um consumo relativamente apressado, digamos dentro dos primeiros dez anos de vida, então sim, a tampa de carica é uma das alternativas mais sensatas do mercado.
    Se estivermos a anunciar os restantes vinhos, os poucos que foram desenhados e pensados para uma longuíssima guarda, então a resposta só poderá ser inconclusiva. Não existem estudos que possam sustentar a sua validade… ou da falta dela.

    Mas, realisticamente falando, é altamente improvável que a tampa de carica venha alguma vez a evidenciar um papel de relevo. O inconsciente humano associa-a a vinhos baratos, a refrigerantes, a produtos de fraca imagem. O que é lamentável, porque como solução técnica, é uma das mais interessantes…

    Abraço,

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    Elizabeth Rato

    March 1, 2009 at 03:02

    Não consigo imaginar um Barca Velha, um Vale Meão…um Vintage qualquer…um Bordeaux…e tantos outros em tampa de carica!Sou tradicionalista…
    Cumprimentos

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    Tovi

    March 1, 2009 at 09:04

    Se o Rui Falcão nos diz que a carica é uma solução técnica interessante, quem sou eu para o contestar… Mas só de pensar na hipotética possibilidade de encontrar na prateleira do supermercado que frequento um “DOC Douro” ou um “DOC Alentejo” em garrafa vedada com carica, até se me arrepia a espinha.

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    Hugo Mendes

    March 1, 2009 at 09:52

    Rui:
    Tradição ou não, confesso que me fascina a mística de abrir uma garrafa com saca-rolhas e tudo o resto, inclusive os tempos de espera que esta operação encerra. Sou um adepto da rolha, mas não sou menos de outras soluções que sejam acima de tudo adaptadas e correctas para os vinhos que se preterem. Pela crown cap tenho desde à muito, um carinho especial (não fosse eu “formado” pela industria cervejeira e um apaixonado pela enologia de espumantes!) e penso que é, talvez, o melhor concorrente para a cortiça, não só pela sua versatilidade técnica como também pela logística associada á sua utilização!
    Tecnicamente, penso que em ambos os lados existem soluções adequadas às necessidades de cada vinho, ambas têm vantagens e desvantagens, e no limite, é mesmo o gosto e a vontade que impera. E não me parece que a utilização de uma tenha de obrigatoriamente, ditar o fim da outra, que é como normalmente estas questões são postas!
    Pessoalmente, estou convencido que, na introdução de vinhos em espaços e ambientes onde até agora este não conseguiu penetrar (bares e discotecas, por exemplo!), a utilização de “caricas” aliada a volumes menores e imagens apelativas, leva clara vantagem sobre a rolha. Há que desmistificar de uma vez por todas estas questões e, não tenho dúvida que os produtores e jornalistas terão de ser os primeiros.
    Parabéns pela antecipação Rui.
    Abraço
    Hugo

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    Marco Carvalho

    March 2, 2009 at 15:55

    Caro Rui,

    Mais uma vez demonstra que a maneira como escreve não deixa ninguém indiferente e as suas opiniões traduzem um contributo “vanguardista” e visionário para o sector do vinho.
    Apesar de tudo, este artigo mexe com algumas das minhas dúvidas em relação à forma como devemos comunicar o vinho. Falo em comunicação porque considero que a embalagem é um atributo fundamental na forma de apresentação de um vinho. Ora se um vinho deve contar uma história, uma vez que quer se queira ou não, o vinho contém um lado sentimental que o diferencia por exemplo das cervejas, ao lhe retirar-mos um componente como a rolha, não estaremos também a retirar algum do misticismo que a própria embalagem comporta.
    Por último deixo-lhe uma pergunta: acha que estas roscas devam ser aplicadas apenas a vinhos de gama baixa/média ou pensa que também devam ser utilizadas em vinhos topo de gama, de renome ?

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    Rui Falcão

    March 2, 2009 at 16:47

    Peço desculpa a todos, mas esta semana estou na Grécia e vai-me ser difícil, se não memo impossível, poder oferecer uma resposta rigorosa a todas as questões levantadas…

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    Elizabeth Rato

    March 2, 2009 at 17:12

    BOM TRABALHO!

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    Nuno Oliveira Garcia

    March 3, 2009 at 17:41

    Eu todos os anos arranjo umas caixas de um espumante bruto zero rasca de uma cooperativa do centro do País e todas as garrafas vêm com carica e, por debaixo, com um ligeiro tampão de plástico.

    E é sempre um sucesso abrir um espumante com um saca-caricas e ver as ditas a voar… cuidado é com os olhos…

    NOG

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    antonio joao

    June 19, 2009 at 20:27

    Ola
    Recolhi este url na revista de vinhos. Serei um leito interessado.Felicidades. AA

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    Luis Pato

    June 20, 2009 at 18:12

    Infelizmente para a nossa agricultura sobretudo a florestal o futuro vai na direcção da “crica”. Imagina um espumante com rolha de cortiça, mesmo com a melhor, após descapsulagem e o mesmo vinho tapado com a “crica” após a descapsulagem. Se o vinho espumantetiver capacidade de envelhecimento, morrerá em , no máximo dois anos com a de cortiça e ao fim de 5 ,seis ou mais anos , dependendo do vinho em si sem perder o gás e continuando a envelhecer sem a presença da borra , isto é, sem o amanteigamento das proteinas libertas pela quebra das paredes das leveduras.

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    Rui Falcão

    June 21, 2009 at 22:41

    Luis Pato,

    Sim, racionalmente a tampa de carica seria sempre a melhor escolha. No entanto, e apesar dos benefícios evidentes, duvido que a escolha alguma vez pegue, por todos os preconceitos a ela associados.
    Espumantes, brancos, rosados e tintos, todos teriam muito a ganhar com a opção técnica pela carica, mas… ela não vai acontecer! Aliás, os poucos produtores alemães e austríacos que ensaiaram comercialmente o vedante acabaram por ter de recuar, pela queda brutal nas vendas…
    Enfim, nem todas as decisões são tomadas com a razão e o coração ainda manda.

    Abraço,

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    Luis Pato

    June 23, 2009 at 20:45

    Já vistes a apresentação da CRICA disfarçada duma casa de Champanhe?Sabias que até aos anos 70 o primeiro engarrafamento de espumante era com rolha de cortiça que era descapsulada e depois de doseada era de novo rolhada com cortiça, então, totalmente natural, e que foi substituida pelo uso da crica na segunda fermentação e ninguém deu por nada? Ou talvez tenha , mas esqueceu-se.Bem sei que os vinhos vivem de tradição , mas olha para a entradaa do Screw Cap. Embora tenha havido alguma exitação o seu consumo ainda não se inverteu.

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    Rui Falcão

    July 1, 2009 at 16:36

    Luis Pato,

    Sim, e pareceu-me genial. Utiliza o sistema mais fiável, a simples carica, escondida por entre um aparato que sugere uma imagem de requinte. A abertura não é mais que o levantar da carica de forma intuitiva. Barato, fiável, funcional e simples.
    Mas enfim, esteticamente é um desastre, com aquela alavanca horrorosa e saliente a lembrar a cavilha de uma granada.

    O mais interessante é que a Penfolds está a testar um novo sistema de rolha de vidro, aparentemente bem diferente do Vinolok. Umas quantas garrafas de Grange têm estado a estagiar para perceber a evolução…

    Abraço,

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