Publicidade indesejada

Um dos axiomas mais reverenciados no mundo da publicidade, repetido até à exaustão por todos aqueles que falam em publicidade de uma forma leiga, é a velha máxima de que toda a publicidade é proveitosa para o anunciante, independentemente de ela se apresentar conotada com uma carga positiva ou negativa. Aos olhos de muitos o simples facto de se comentar uma empresa é motivo suficiente para que a promoção seja efectiva, para que o nome seja recordado, para que a semente seja lançada junto dos potenciais consumidores.

Infelizmente, e como tantas vezes acontece na vida concreta, a realidade encarrega-se de refutar esta teoria tão universalmente aceite, envolvendo algumas marcas em processos que se podem transformar em autênticas maldições para a sua estratégia. A publicidade gratuita nem sempre é acolhida com agrado e nem sempre é proveitosa, sobretudo quando posiciona marcas de luxo fora do seu contexto, fora da sua zona de conforto, fora do seu espaço natural.

Uma das vítimas mais conhecidas deste enfado mediático foi a prestigiada marca de roupa norte-americana Abercrombie & Fitch, uma etiqueta indelevelmente conotada com o requinte e o luxo que foi subitamente abalada nos seus alicerces pela presença contínua num reality show norte-americano patrocinado pela cadeia de televisão MTV. Mike Sorrentino, mais conhecido como the situation, o asnático pequeno delinquente protagonista do famoso reality show New Jersey surgia com frequência nos écrans enfarpelado em roupas Abercrombie & Fitch, publicidade muito mal recebida pela marca de roupa que se ofereceu mesmo para pagar ao elenco do reality show para que estes não usassem as suas roupas.

Mas o exemplo mais evidente das consequências incómodas da publicidade indesejada chega-nos do vinho, mais concretamente do universo restrito das grandes casas de champanhe, vinho intimamente associado ao luxo e à celebração dos grandes momentos da vida. Uma associação directa entre luxo e glamour que todos os produtores de champanhe pretendem promover e conservar a qualquer custo, posição de difícil manutenção quando algumas das marcas mais famosas da região se viram associadas ao movimento da cultura popular hip-hop norte-americana.

A história conta-se em duas penadas e envolve um dos vinhos mais lendários de Champagne, o famosíssimo e caríssimo champanhe Cristal da Roederer, encomendado originalmente no século XIX pelo Czar Alexandre II em garrafa transparente de cristal, vestido de rótulo dourado e embrulhado em papel dourado com filtro UV para protecção total do vinho. Um champanhe de reis e de príncipes, um champanhe de vedetas consagradas e de artistas famosos, de figuras públicas e de apreciadores dedicados, conotado com o luxo e com uma qualidade irrepreensível.

Mas eis que essa imagem de estatuto social construída ao longo de muitas décadas de publicidade controlada foi arruinada com a súbita paixão da cultura hip-hop por este champanhe de embalagem dourada, uma cultura de rua fascinada por tudo o que seja brilhante ou dourado, uma cultura de imagem tumultuosa que chega a publicitar imagens de armas banhadas a ouro e que subitamente elege o champanhe Cristal a ícone desta cultura, publicitando o champanhe em inúmeras letras de música rap e apresentando-o em infinitos vídeos onde o champanhe Cristal é bebido directamente da garrafa entre outros símbolos de sucesso material como as roupas Prada e os automóveis Bentley.

Uma imagem e associação que não agradou aos directores da famosa casa e cujo mal-estar Frederic Rouzaud, o director executivo da Roederer, não conseguiu esconder durante uma longa entrevista concedida à prestigiada revista Economist. Quando interrogado sobre os potenciais conflitos e danos para a casa sobre a associação do champanhe Cristal à cultura rap Frederic Rouzaud respondeu “Eis uma boa questão, mas que podemos nós fazer? Não podemos proibir a comunidade rap de comprar e beber o nosso champanhe”. Uma frase que conseguiu exaltar a cultura hip-hop norte-americana na sua totalidade incitando a inúmeros comunicados e declarações de boicote à marca, garantindo juras de nunca mais mencionar ou comprar o champanhe Cristal.

Quem ganhou com a insurreição da comunidade rapper foi a marca de champanhe Armand de Brignac, um pequeníssimo e até à data quase obscuro produtor, subsidiário da casa Cattier, que subitamente se viu eleito por toda uma cultura hip-hop como novo símbolo de estatuto social e de imagem de luxo brilhante. Para tal contribuiu o facto de os champanhes serem vendidos numa garrafa metálica que no caso do ex-líbris da casa, o Armand de Brignac Brut Gold, também conhecido como Ás de Espadas, ser embrulhado numa garrafa metálica dourada opaca que faz as delícias de uma cultura que aclama os dourados e as imagens exóticas.

Uma decisão salomónica que acabou por fazer a delícia de duas casas, uma por se ver livre de publicidade indesejada que aparentemente banalizava uma marca de luxo discreta, outra por ter ganho uma notoriedade e mercado que desconhecia até então e a que dificilmente poderia aspirar.

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