Paraíso

Há dias assim, dias de absoluta perfeição, de deleite, de prazer infinito. Dias marcantes, dias que nunca terminam, dias que deixam cravada, no peito e na memória, uma marca perpétua e indelével. Dias de meditação, de ponderação, dias de recolhimento e agradecimenTerrantez 1715to. Dias de profundo misticismo, dias de evocação do divino, dias de graças pela genialidade do homem, pela intemporalidade da obra humana. Dias de louvor ao céu e à terra!

Não escondo que já provei, melhor, que já bebi, muitos vinhos extraordinários ao longo da minha vida. Ser jornalista de vinhos profissional, crítico de vinhos a tempo inteiro, apaixonado pelo vinho, partidário e amante de vinhos estrambólicos e excêntricos, representa uma ventura imensa. Sim, já provei muitos vinhos interessantes, de muitas proveniências, de muitos estilos, incluindo os pouco convencionais. Vinhos de colheitas recentes e colheitas antigas, centenários ou ainda a terminarem a fermentação, vinhos intensos e vinhos já decadentes, suaves e ásperos, delicados e brutais.

Mas nada, absolutamente nada da minha experiência precedente podia preparar-me para o grande dia, o dia em que experimentei uma das maiores satisfações da minha vida de enófilo – o dia em que provei, e bebi, um Madeira Terrantez de 1715. Sim, a data não é um lapso, nem um deslize da caneta e reafirmo-a para que não quedem dúvidas, 1715! Face a tamanha responsabilidade, os restantes vinhos em prova, um Listrão do Porto Santo de 1957, um Carcavelos de 1912 e um Boal de 1896, mais pareciam vinhos frívolos e levianos, triviais, a servir de entretém para o prato principal.

Primeiro a garrafa, bojuda, desequilibrada, rude e imperfeita, vidro escurecido e grosseiro. A rolha quase desfeita, felizmente ainda preservada pelo lacre já estalado, desgastada pelo tempo, ofereceu pouco resistência ao saca-rolhas de lâminas. O vinho, esse, deixou-nos perdidos em expectativas, num grito contido de ansiedade. Afinal, foram quase trezentos anos de história, primeiro cheirados… e depois bebidos. Quando provamos vinhos destes, com tamanha carga histórica e emocional, somos compelidos a pequenos esforços mentais que nos possam situar no tempo e na história. Deste, confesso que só fui capaz de recordar que ainda faltavam cinquenta e quatro anos para que o imperador Napoleão viesse a nascer…

Incrivelmente, e porque não confessá-lo, inesperadamente, o vinho apresentou-se simplesmente… magnífico! Não escondo que acalentava poucas esperanças de encontrar qualquer sopro de vida neste Terrantez, pouco mais para além do prazer egoísta de ter uma recordação para agasalhar. Mas, ao meu cinismo crítico, o Terrantez respondeu com uma cor aloirada, aqui e ali tingida por evidentes reflexos esverdeados. As notas de torrefacção, potenciadas pela discreta e suave volátil, típica dos Madeira envelhecidos, adubadas pela ténue presença de amêndoas torradas, marcaram a primeira hora de vida. Fresco, vivo, hesitante entre o regozijo da doçura e a veemência da acidez mordaz, terminou sério, profundamente longo para tamanha idade.

Que homens fizeram este vinho? Quantas gerações foram privadas do prazer de abrir esta garrafa para que alguém, quase trezentos anos depois, pudesse aqui relatar esta história? Quantos vinhos, para além do Madeira, poderiam sobreviver a três séculos de cativeiro?

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21 Comments
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    JSP

    January 25, 2009 at 02:46

    😮

    Impressionante é pouco.

    Parece que um Rüdesheimer Apostelwein de 1727… (mas como sabem, se não o abriram? – ou estarei a pensar mal?)

    http://www.graycliff.com/index.php?option=news&task=viewarticle&sid=135&Itemid=225

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    João Rico

    January 25, 2009 at 12:54

    Caro Rui,

    Impressionante relato. Confesso que até sinto inveja por um vinho destes. Os Madeira são realmente dos vinhos mais impressionantes que o mundo tem e por eles nutro uma devoção enorme (na hora de dizer, para mim, qual “o melhor” vinho do mundo, grito sem reservas, o Madeira). Felizmente tenho sido um privilegiado no contacto com estes vinhos eternos.
    Agradeço a partilha que fez connosco.

    Bem haja,

    JR

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    Rui Falcão

    January 25, 2009 at 13:16

    João,

    Sim, eu bem sei que partilhamos deste enorme fascínio pelo Vinho da Madeira. Infelizmente, e digo-o com grande pesar, fazemos parte de uma minoria, uma muito pequena minoria… que, desgraçadamente, não chega para sustentar os poucos produtores da Madeira que ainda resistem. Por quanto tempo mais?

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    jms

    January 25, 2009 at 15:25

    Invejável! Superlativo! Como é possível?!

    O vinho mais antigo que já provei e bebi também é um Madeira (Boal, salvo erro, 1856. Infelizmente conheço pouco os Madeira, de os provar, por culpa minha e deles, de raros e de caros (os que valem a pena).

    Tenho o grato prazer e estou premiado à recordação indelével de uma sala inebriante de aromas, de bouquet inesquecível da prova de Boal onde provei esse tal de 1856 (?, como nunca senti em qualquer outra circunstância.

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    Rui Falcão

    January 25, 2009 at 15:53

    Jorge,

    Reconheço que a aventura pelo mundo do Vinho da Madeira não é fácil. Por existirem muitas categorias, por falta de interesse dos produtores da Madeira no mercado continental, por aparente alheamento do Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM) e, manifestamente, por falta de meios que ajudem na promoção. Sobre a divulgação no mercado português (e internacional), no meu papel de jornalista e crítico, tenho feito todos os esforços por passar a mensagem, por via oral e escrita.
    Não será um contributo decisivo, mas todos os auxílios são importantes.

    Abraço,

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    Pingus Vinicus

    January 25, 2009 at 16:29

    Rui, muito lentamente vou aprendendo mais um pouco sobre os vinhos da Madeira. Efectivamente são vinhos pouco conhecidos e os melhores andam longe do consumidor.
    Não há muito tempo, provei um Sercial FEM Muito Velho que gostei particularmente. Bem tentei perceber o que era, mas não consegui encontrar qualquer informação sobre ele. Consegues-me ajudar, dando, se possível, algumas pistas?
    Um abraço

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    Rui Falcão

    January 25, 2009 at 18:11

    Rui,

    Não conheço o vinho e não tenho qualquer referência sobre o produtor. É relativamente vulgar, no Vinho da Madeira, descobrir garrafas “desconhecidas”, de produtores enigmáticos, de siglas ininteligíveis. A história do Vinho da Madeira é complexa e intricada, com constantes aglutinações de sociedades, fusões, compras, criações de novas sociedades, num rodopio difícil de traçar. Num meio relativamente pequeno, com uma burguesia comparativamente pequena, é fácil descobrir ligações de parentesco entre quase todas as sociedades, famílias inglesas incluídas.

    Não conheço as siglas FEM, e tão-pouco posso adiantar se o vinho será realmente velho, ou não. Ao não apresentar datas de colheita, e sem ter tido ocasião de provar o vinho, é-me impossível saber se o vinho era realmente velho. É que o designativo “Muito Velho” não tem valor legal definido, embora, por tradição, traduza um vinho com um mínimo de dez anos de estágio. Mas poderá ter muitos mais, porque o designativo é frequentemente empregue por quem não tem registos de transacção, suporte documental e legal que ateste a idade dos vinhos e/ou uvas compradas.

    Sorry, mas não sei adiantar mais…

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    José Tomaz de Mello Breyner

    January 26, 2009 at 09:30

    Caro Rui

    Grande descritivo nos faz aqui desta prova. Tal como no livro o Equador eu tive a sensação de conseguir sentir os cheiros de São Tomé, também aqui nesta sua descrição pareque que sinto os cheiros e os sabores deste Madeira.

    Um abraço e bem regressado seja ao contacto com os seus leitores habituais.

    Zé Tomaz

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    Rui Falcão

    January 26, 2009 at 10:03

    Zé Tomáz,

    É uma honra ter os bons amigos aqui. Muito obrigado pelo comentário tão simpático.
    Também eu, que tive essa enorme ventura de provar, e poder beber, este Terrantez 1715, ainda sinto os aromas no ar… apesar de o ter bebido há quase cinco meses! É esta magia que separa os vinhos de inspiração divina dos “simplesmente” excelentes, este encanto e fascinação infindáveis, esta memória viva e carnal dos momentos de prazer, dos instantes de reflexão. E, neste caso, temos ainda de acrescentar o carinho e a deferência que um vinho com quase trezentos anos sempre suscita!

    Abraço,

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    Luís Paiva

    January 26, 2009 at 14:25

    Sem querer misturar águas, por que razão se tem feito e se continua a fazer tão pouco pelo Vinho da Madeira, quer o governo regional quer o da república?

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    Rui Falcão

    January 26, 2009 at 21:48

    Não sei Luís, não sei…
    A resposta é do foro político, o que me tolhe a capacidade de argumentação. Cabe-me a mim, como jornalista especializado em vinhos e autor, fazer o papel de divulgador, de promotor da qualidade… tarefa facilitada ao ser um verdadeiro apaixonado pelos vinhos da Madeira.
    Mas o que o Luís afirma é um facto indesmentível…

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    Miguel Pereira

    January 27, 2009 at 09:46

    Caro Rui,

    Mas que grande prova!
    De deixar muita, muita água na boca.
    Também tenho uma garrafita de um Boal 1957, mas ao lado desse…

    Abraço

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    Nuno Oliveira Garcia

    January 28, 2009 at 16:06

    Caro Rui,

    Mais uma prova magnífica e uma descrição ao mesmo nível!

    Quanto adoro eu os Madeira… ultimamente entretenho-me com três da Blandys, o Bual 1920, e os 1977 (terrantez e bual) – estes últimos a um óptimo preço.

    Ab.

    NOG

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    Rui Falcão

    January 28, 2009 at 16:15

    Miguel,

    Não é preciso dizer que este foi um vinho e um momento único que, só muito excepcionalmente, poderá ser duplicado. Mas, por favor, não sinta qualquer tipo de consternação por ter um Boal 1957 para provar. Não sei quem será o produtor, mas, quase certamente, terá aí um vinho excepcional. Espero que a garrafa esteja à altura das suas expectativas.

    Abraço,

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    Rui Falcão

    January 28, 2009 at 16:20

    Nuno,

    Não me recordo de ter provado o Blandy’s Terrantez 1977, e como tal não posso adiantar comentários. Mas reitero e subscrevo a sua apreciação sobre o Bual 1977 e o Bual 1920, justeza de preços, incluída!

    Abraço,

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    Nuno Oliveira Garcia

    January 29, 2009 at 10:30

    Caro Rui,

    Não se recorda do Blandy’s Terrantez 1977 e deve ter razão porque, olhando melhor para a garrafa, o que ando a beber é o Terrantez de 1975 (os de 77 são bual e verdelho).

    Um realmente velho que gostei muito foi um malvasia 1879…

    Um ab.

    NOG

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    Rui Falcão

    January 29, 2009 at 10:44

    Nuno,

    Nesse caso volto a concordar e a subscrever as suas afirmações. Blandy’s Terrantez 1975 e Blandy’s Verdelho 1977 são vinhos belíssimos!

    Abraço,

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    Adelino Chapa

    January 29, 2009 at 11:28

    Deve ser fabulosa, essa sensação de beber a própria história.

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    Rui Falcão

    January 29, 2009 at 20:10

    Adelino,

    Indubitavelmente! Para além das qualidades inquestionáveis do vinho, que as tinha, o momento passou também por sentir que estava a beber história. O momento foi mágico não só pelo vinho, mas como ocasião para meditar sobre o vagaroso passar do tempo, perdendo tempo para pensar sobre aqueles homens que fizeram o vinho… e também em todos aqueles que o guardaram, em todos aqueles que souberam manter a frugalidade necessária para guardar a garrafa, para que, quase trezentos anos depois, alguém tivesse o privilégio de a poder desfrutar.

    Abraço,

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    Ramiro Santos

    March 10, 2009 at 17:28

    Nunca tive oportunidade de provar vinhos desses. Mas no mês passado comprei uma garrafa de terrantez, sem data de colheita, do produtor Artur Barros de Sousa, no Clube del Gourmet. Quando a abri saiu-me um vinho muito seco. Fiquei perturbado porque, tanto quanto recordo, em 1998, por altura da Expo, bebi um terrantez e o vinho era doce. Estarei confundido ou o vinho terá defeito?

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    Rodolfo Olim

    November 15, 2011 at 14:46

    Boa Tarde Sr. Ramiro,
    O vinho Terrantez pode ser doce ou seco, dependendo de como é tratado. No caso da empresa Artur de Barros e Sousa, Lda, o vinho é sempre seco.
    Caso necessite de mais algum esclarecimento entre em contacto.
    vinhomadeira@gmail.com
    Obrigado.

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