O apelo irresistível…

O fenómeno é recorrente e consequente, quase instintivo para quem vive o vinho de forma apaixonada, congénito para quem se embrenha e empenha diariamente nas singularidades e peculiaridades do vinho. Fazer um vinho, o seu vinho, é o sonho natural de qualquer enólogo. Poder expO apelo irresistível...ressar livremente a sua sensibilidade, os seus amores e fantasias, numa veia criativa, num movimento de afirmação pessoal, é o sonho último de todo e qualquer enólogo… independentemente do que o politicamente correcto imponha como discurso oficial. É difícil, muito difícil, resistir à sedução fatal do vinho, ao apelo da criação pura e dura, à livre expressão de convicções, à locução das crenças pessoais, à alegoria da eternidade. O sentimento de liberdade criativa, o inebriamento artístico de poder oferecer uma interpretação única da natureza, compensam as muitas dores de cabeça intrínsecas a tal empreitada.

Igualmente inequívoco, embora aparentemente menos natural, é o desejo íntimo que a larga maioria de críticos e jornalistas/escritores de vinho acalenta, resguardado nas profundezas da alma, de um dia fazer o seu vinho. Poucos se atreverão a confessá-lo, poucos terão a ousadia de o mencionar publicamente, poucos o assumirão de forma explícita. Porquê? Talvez porque, por alguma razão obscura omnipresente nos países latinos, sentimos invariavelmente vergonha em expor sentimentos, pudor em transpor fronteiras bem circunscritas, decoro na vontade de cambiar de campo. Se são relativamente comuns os exemplos anglo-saxónicos de conversões de crítico a produtor, só excepcionalmente reconhecemos a mesma aventura nos países de cultura latina. E no entanto, nada é mais natural que a exteriorização deste desejo cuidadosamente escondido.

Depois de anos de divulgação da mensagem teórica, depois de infinitos artigos de opinião a exprimir intenções e convicções, depois de incontáveis prelecções sobre o futuro do vinho, depois de incalculáveis dissertações sobre o rumo certo a tomar, os desafios e as oportunidades, é apropriado que alguém sinta o chamamento da terra, o clamor do exemplo. Depois de milhares e milhares de vinhos provados, depois de ter capturado os desafios e anseios do mercado, depois de finalmente saber o que se pretende da vida, a transição e o desejo de extravasar fronteiras são naturais.

James Halliday será, porventura, o exemplo mais gritante da familiaridade natural entre a crítica, a escrita e a produção. É, seguramente, um dos autores mais prolíficos e prestigiados do planeta… o que não o impediu, bem pelo contrário, de continuar a exercer direito e de estabelecer, primeiro a Brokenwood Winery, e, posteriormente, a célebre Coldstream Hills, produtor exemplo para muitas gerações.

Mas é no Reino Unido, metrópole do jornalismo e crítica de vinhos, que se descobrem mais e melhores ensinamentos. Robert Joseph, co-fundador da revista Wine e do celebérrimo Wine Challenge, o maior concurso de vinhos internacional, é o exemplo mais fresco da tendência, com os seus vinhos bordaleses e regionais do Pays d’Oc a invadir as prateleiras dos supermercados ingleses e norte-americanos. Hugh Johnson, certamente o autor mais reverenciado e considerado do mundo do vinho, para além de actual co-proprietário do produtor húngaro Royal Tokaji Company, foi director de produção do Château Latour, em Bordéus, durante alguns anos. Richard Mayson, autor especialmente chegado a Portugal, é co-proprietário dos vinhos Pedra Basta, radicados na Serra de São Mamede, Portalegre, fruto da sua longa ligação com Portugal. Até Charles Metcalfe, amigo pessoal e ilustre especialista dos vinhos portugueses, encetou, ainda que de forma quase recreativa, uma passageira ligação à produção portuguesa. Ou melhor, sob o pretexto da reunião e apresentação magna dos vinhos da associação Independent Wine Growers (IWA), em Londres, criou um lote único e arrojado de um branco amparado nos vinhos de Alves de Sousa, Luis Pato, Casa de Cello, Quinta do Ameal, Quinta da Covela e Quinta dos Roques, aferrolhado com uma rolha esmagadora na dimensão.

No mundo mediterrânico as vozes são mais baixas, os sussurros mais familiares, os comentários mais difusos. Poucos exemplos sobram para além de Victor de la Serna, homem grande do jornalismo vinícola espanhol, autor dos belíssimos Finca Sandoval, na esquecida Manchuela.

Tal desiderato seria possível, desejável, e facilmente aceite em terras lusas?

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11 Comments
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    João Rico

    February 12, 2009 at 11:40

    Oh Rui,

    Deveria ser aceite mas penso que a ser, seria com alguma dificuldade pelos “Velhos do Restelo”.
    Seria um sonho para mim, um dia, se viesse a ter conhecimentos e condições para isso. Ter o meu vinho, ter o prolongamento de tanta paixão, ter algo meu, criado por mim. Um sonho…..

    Abraço

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    João de Carvalho

    February 12, 2009 at 17:13

    João Afonso tinha (não sei se ainda produz) uma marca de vinhos, Rogenda (vendia-se no Pingo Doce).

    Nos dias de hoje e assim de momento, Aníbal Coutinho tem um vinho de nome Escondido.

    Quanto ao fazer um vinho, já esteve mais longe essa possibilidade no que a mim me toca.

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    Hugo Pacheco

    February 12, 2009 at 17:20

    Caro Rui,
    Tenho de concordar a cem por cento, com o teu post. Sendo eu um principiado, a aprender na área dos vinhos, mais concretamente como escanção, já me passou muitas vezes pela cabeça, elaborar um vinho, mas não é fácil, pois o investimento pode não ser muito, mas ainda não consigo embarcar com tal. Já pensei associar-me a algum produtor, que pudesse me fornecer a matéria prima como a matéria tecnológica, e digo-lhe que não é fácil.
    Ou por ser ainda novo, ou não ter reconhecimento publico, não sei, sei sim que não é fácil para um jovem que têm a ideia, mas fundo maneio não, e ai é o problema. Ou seja como tudo em Portugal se trabalha muito á custa ainda dos “amigos”, como poderá uma pessoa que cria se desafiar a ela própria, elaborando o néctar que aprecia, estuda e trabalha ao vender, conseguir apoios para tal? Fica esta pergunta, meu caro Rui, pois ideias não faltam, falta sim o principal, o acreditar…

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    Rui Falcão

    February 12, 2009 at 19:28

    João,

    Efectivamente o Anibal Coutinho produz um vinho, o Escondido. Não me recordei do detalhe, que, evidentemente, não é um pormenor assim tão insignificante para a história. Confesso que não conheço o vinho.

    Já o Rogenda, apesar de ser parte integrante do universo familiar de João Afonso, não é sua responsabilidade directa. O vinho é propriedade e responsabilidade do pai de João Afonso.

    Abraço,

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    Rui Falcão

    February 12, 2009 at 19:46

    Hugo,

    Acreditar parece-me ser precisamente a palavra fundamental. Acreditar, ser persistente e resistente. Roma e Pavia não se fizeram num dia. Se o Hugo nutre mesmo essa ambição, então acarinhe-a e seja perseverante. Nem pode ser de outra forma, porque a paciência é uma das maiores virtudes no mundo do vinho. Não desista… e quem sabe se dentro de alguns anos não estarei aqui a comentar os seus vinhos?

    Abraço,

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    João de Carvalho

    February 12, 2009 at 20:03

    Mostraram-me uma vez, uma garrafa do dito Escondido 2006, a produção é de gaveta com umas 250 unidades a rondar cada uma os 100€.

    Sobre os Rongenda (e que pena não terem continuado), lembro de uma vez o João Afonso dizer que fez vinho entre 1994 e 2005, a partir dos vinhedos de seu pai. Mesmo não estando registado como produtor não deixou de ser parte importante na sua elaboração.

    Cumprimentos.

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    Rui Falcão

    February 12, 2009 at 21:37

    João,

    Sim, é natural que o João Afonso tenha desempenhado um papel relevante na produção e construção do Rogenda. Se eu me encontrasse numa conjuntura semelhante, seguramente teria a mesma delicadeza e empenho de participar activamente num projecto liderado pelo meu pai…

    Abraço,

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    Hugo Mendes

    February 13, 2009 at 10:15

    Caro Rui:

    Não acho que pessoa alguma tenha o direito de impedir outra de perseguir um sonho! O direito a fazer o seu próprio vinho, não pode de todo ser barrado a ninguém, independente da profissão (como temos visto até aqui!).
    Até aqui nada de novo!
    Contudo, sinto no texto uma ligeira provocação, mas, quanto à legitimidade jornalística de alguém que envereda pela produção! Estarei errado?
    Na questão há de facto prós e contras, na medida em que se, é muito vantajoso que um produtor seja o mais conhecedor possível do universo vínico (não tenho duvidas que preferiria 1000x fazer vinho para um crítico de vinhos que para um Eng. Civil!), também não é menos verdade que um critico produtor pode perder parte da imparcialidade e principalmente, da liberdade que teria até aí! Acima de tudo acho que é a sua função enquanto crítico que pode ficar debilitada, posta em causa e não a de produtor! Acontece um pouco como os enólogos consultores/produtores. Como será quando um crítico tiver de avaliar um vinho que concorra contra o seu? O vinho terá de entrar no mercado e de ser sujeito às regras dos outros e depois, uma vez na selva há que ir buscar, pelo menos, o dinheiro empatado!
    Dirá que cabe sempre ao consumidor avaliar a isenção e o contesto da prova e que no essencial, os produtos têm de se vender por si! Que é o mercado quem faz a triagem! Concordo inteiramente!
    À primeira vista não consigo conceber muito bem a ideia de um analista político acumular funções de deputado e comentador ao mesmo tempo. Ou um crítico de cinema ser também realizador ou produtor. Um critico literário ser escritor de romances. Acho que lhe rouba, legitimidade e força interventiva!
    Não me considero contra a ideia, tenho somente, algumas dúvidas quanto á acumulação de funções!
    Abraço
    Hugo Mendes

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    Rui Falcão

    February 13, 2009 at 11:27

    Hugo,

    A provocação, em maior ou menor intensidade, assumida ou escamoteada, está sempre presente num texto de opinião de um jornalista…

    Antes de continuar deixe-me só lançar uma aclaração prévia, porque penso ter sido mal interpretado na minha assumpção. A construção do texto parte de um pequeno pressuposto, de que é o jornalista/crítico de vinhos a fazer o seu próprio vinho, a lançar um projecto autónomo, com a sua marca pessoal, preferencialmente ocupando-se das decisões diárias da vinha/adega… e não de um mero vínculo pontual, uma associação meramente “oportunista” com um produtor, firmado ou não, que permita ganhos mútuos de notoriedade.

    Existem riscos na acumulação de actividades, na transposição de fronteiras? Sim, parece-me claro, e há que saber gerir os possíveis pontos de conflito, as questões éticas e a sensibilidade social. Mas não consigo encarar o mundo e a sociedade como um conjunto finito e cercado, um conjunto de compartimentos estanques, de fronteiras bem delimitadas, de transposição proibida.
    Por educação, por princípio, por herança genética, nos países latinos sente-se uma desconfiança endémica sobre os indivíduos, sobre o cidadão, e, sobretudo, sobre quem tem a capacidade de emitir opinião. No final, o bom senso deveria ser a regra dominante.
    Sim, sim, eu sei, como é que se mede e se define o bom senso, não é?

    Abraço,

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    Elizabeth Rato

    February 21, 2009 at 00:13

    Não acharia chocante, mas sim perfeitamente natural ver um vinho criado por um critico/jornaista, como por exemplo ver um vinho criado por Rui Falcão. Todos os seus artigos/textos que tive o prazer de ler demonstram não só interesse e experiência, como também muita dedicação, carinho e paixão. Porque não juntar um conhecimento mais profundo e fazer transparecer todos esses sentimentos não só através de palavras e descrições, mas sim através duma produção dum vinho próprio?
    Tal como o João Rico afirma “um sonho”… mas um dos meus sonhos também gira à volta do vinho, por isso há que acreditar nos sonhos e lutar para a realização dos mesmos.
    Cumprimentos

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    Rui Falcão

    February 21, 2009 at 00:21

    Elizabeth,

    Quem sabe? A experiência ensinou-me a não ser peremptório na afirmação “desta água não beberei”…

    Abraço,

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