Nikolaihof

Confesso, tenho uma relação dúbia com os apostolados da biodinâmica, com os preceitos e as práticas, com a filosofia subjacente. Se a minha formação académica, científica e racional, me afasta por inteiro dos conceitos fundamentais, a prática, Nikolaihofapesar da ausência de explicações razoáveis, tem-me mostrado resultados notáveis. Se a lógica e o raciocínio me afastam do conceito, a perspectiva de uma agricultura mais saudável, respeitadora do ambiente e do homem, são conceitos que me seduzem. Se o evangelismo e o proselitismo dos fundamentalistas da causa me aborrecem, os resultados práticos, esses são excitantes.

Apesar de não adivinhar os porquês, apesar da estreiteza de respostas da ciência, a prática evidencia que a agricultura biodinâmica produz resultados inexplicáveis, com uma vitalidade e qualidade ímpar na vinha. Efeitos confirmáveis, ainda que empiricamente, por todos os visitantes de vinhas em prática biodinâmica, na qualidade da fruta, na ausência de doenças, na abundância de vida na vinha.

Serve o intróito para discorrer sobre os vinhos de Nikolaihof, sito na região de Wachau, Áustria. Durante anos, mantive uma opinião ambígua sobre o produtor, apreciando os vinhos mas sem realmente perceber a filosofia, a coerência e lógica da criação. Hoje, apresento-me como convertido, como um devoto da causa, como um apreciador atento dos poucos vinhos que Nikolaihof vai regularmente lançando.

A racionalidade tradicional é aqui substituída por um discurso e costumes muito próprios, por uma ligação profunda com a terra, por práticas aparentemente suicidas, por uma saudável dose de loucura, misticismo e romantismo. A adega é uma das mais antigas da Áustria, assente sobre fundações romanas, edificada há mais de mil anos, no ano de 985, no mesmo local onde há quase dois mil anos se faz vinho. Nikolaihof foi o primeiro produtor no mundo a converter-se às práticas e princípios biodinâmicos, ainda em 1971, numa era onde, aos olhos dos seus atónitos vizinhos, a biodinâmica não andaria muito longe dos princípios da macumba ou feitiçaria.

Na vinha, tNikolaihofal como na adega, acreditam nas virtudes da intervenção minimalista, ou melhor, da não intervenção quase absoluta. Os vinhos são distintos, puros e cristalinos, estupidamente minerais, muito ligeiramente oxidativos, numa lógica em tudo contrária à lógica. Nada deveria funcionar, a desgraça deveria ser inevitável, a calamidade recorrente, a tragédia uma certeza… mas o resultado é simplesmente espantoso. Os vinhos envelhecem bem, muito, muito bem, incrivelmente bem! Ainda me recordo quando Christine Saahs, a guardiã da casa, apareceu um destes dias com uma garrafa de Riesling para provar… de rótulo tapado. Encontrei um vinho maravilhoso, repleto de carácter, intenso mas educado, incrivelmente mineral, frutado, muito floral, repleto de cera, limão, alperce e acácia, límpido e crocante, tenso e fresquíssimo como poucos o conseguem ser. Quando me perguntou se adivinhava a data de colheita fiquei sem saber o que dizer. Todos os indícios apontavam para um vinho ainda mancebo embora as entrelinhas insinuassem uma idade já mais adolescente. Arrisquei o início do milénio, assumindo algum exagero na idade, algum excesso de zelo, refugiando-me numa margem de erro confortável. Fiquei embasbacado, sem voz, quando Christine Saahs me mostrou o rótulo, 1990! Sim, tinha acabado de errar simplesmente por uma década e o Riesling límpido e transparente que estava no copo… tinha dezanove anos de idade. Esmagador, sobretudo quando me contou que este Riesling Vinothek 1990 tinha passado 166 meses em madeira, catorze anos em cascos antigos de madeira avinhada, madeira com quase dois séculos de vida! Candidamente Christine Saahs acrescentou que não adicionaram qualquer sulfuroso, qualquer conservante, por mais natural que fosse… e que a único terapia nestes catorze anos de vida em casco, antes do engarrafamento, consistia numa limpeza trimestral dos cascos, simples limpeza externa acariciando os cascos com um pano seco. Isto numa adega que assenta a escassos metros do rio Danúbio, quase quatro metros abaixo da linha de água do rio, num local muito húmido e tendencialmente bolorento!

Enfim, imagino que o trivial para quem ainda usa o tronco de uma árvore como prensa, uma prensa de madeira, a mesma prensa que foi usada na adega durante os últimos trezentos anos! Que distância para tantas fábricas de fazer vinho que já visitei, que diferença para os princípios da enologia moderna…

6 Comments
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    Marco Carvalho

    May 29, 2009 at 10:51

    Caro Rui Falcão,

    Em primeiro lugar regozijo-me por o ver de volta à escrita. Este tempo em silêncio foi demasiaso longo, para quem gosta de ler os seus artigos.
    Em relação à agricultura biodinâmica, apraz-me dizer que acima de tudo não devemos negar aquilo que não conhecemos (em profundidade). Se por muitos é considerada uma prática radical e extremista, no que toca aos seus fundamentos, o que é certo, como o Rui aqui o provou, é que tem resultados evidentes e demonstráveis. Os produtores são livres de seguir as práticas que julguem mais adequadas, mas de facto não podem negar, nem colocar de lado a hipótese, de num futuro próximo adoptarem outras medidas que sejam mais respeitadoras do meio ambiente, e que possam realmente beneficiar as características do seu vinho. Quem não o fizer poderá estar a hipotecar uma possibilidade real de evoluir e ao mesmo tempo a negar uma evidência. A Biodinâmica deve ser levada muito a sério.

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    Joel Carvalho

    May 31, 2009 at 17:23

    Caro Rui,

    Antes de mais nada é com grande prazer que o vejo novamente activo.

    Bom, a Agricultura Biodinâmica por enquanto não é muito usual em Portugal, ou se é, chamam-na de Agricultura Biológica. É verdade que é um tipo de agricultura muito amiga do ambiente e afins, mas o problema é mesmo o preço envolvido. Pelo menos em Portugal ainda fica muito caro praticar este tipo de agricultura e depois isso reflete-se no preço dos vinhos. Em países como a França, este tipo de práticas é vista como banal ou normal, aqui em Portugal ainda é um tabu, para alguns… Poucos estudos ainda foram feitos, muita pesquisa ainda tem que ser desenvolvida e aplicada no seu devido lugar. É a minha opinião sobre este tipo de agricultura.

    Novamente digo que é um prazer vê-lo de volta,

    Abraços

    Joel Carvalho

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    Hugo Mendes

    June 1, 2009 at 10:01

    Rui:
    Sou Português e, como os demais, acumulo muitos dos erros de avaliação. Sou tendencialmente materialista e esqueço-me muitas vezes das emoções. Contudo, faço um esforço por reduzir ao mínimo a visão ignorante e retrógrada, mas nem sempre é fácil. Confesso que neste mundo maravilhoso do vinho, as suas crónicas têm-me ajudado a deitar abaixo algumas barreiras, a desfazer alguns preconceitos! Obrigado pela ajuda!
    Pouco me importa que acredite no que escreve ou não, menos ainda que transcreva uma menos verdade, criada pela necessidade de mercado. Cada vez mais me convenço que o que distingue um grande vinho de outro qualitativamente semelhante mas de menor sucesso, é a capacidade que o primeiro tem de criar a sensação de experiência (no sentido A vida é bela). Dar um peso ao momento, associar um conceito, uma alma, uma história (ou uma estória, quero lá saber!). Acima de tudo, a capacidade de criar felicidade (não necessariamente inebriante!).
    Tecnicamente estou muito longe de entender a biodinâmica (cuidado Joel, é muito diferente de biológica!), mas seduz-me sobremaneira o imput de sentimento que esta corrente adiciona à produção. Na adega, não estou perto de chegar a um equilíbrio biológico, mas dou por mim a estudar cada vez mais para saber como chegar ao minimalismo absoluto (que penso ser semelhante aos limites matemáticos das equações quadráticas, podemos chegar muito perto, mas nunca tocar!).
    Não acredito que a filosofia vingue por cá, pelo menos por agora, muita coisa tem de ser mudada na mentalidade lusa, completamente dependente e irresponsável. Definitivamente autistas quanto às necessidades a alheiam.
    E, não é só dos produtores que falo, é também dos consumidores que ditam as necessidades do mercado!
    Já agora Rui, espero que tenha boas fotos e apontamentos organizados dessas viagens todas, é que um dia destes, vamos mesmo ter de lhe pedir que as desenvolva todas em livro! ; )
    Hugo Mendes

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    Antonio

    June 7, 2009 at 12:17

    Mais que os libros ou as defensas filosóficas e teóricas da biodinámica que atopas em uma adega deste clam, é a ausença de determinados produtos e sobre todo o cheiro e as sensaçoes de vida natural que transmite a vinha o que as fai especiais.

    Saudos desde a Galiza

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    Rui Falcão

    June 7, 2009 at 22:10

    António,

    Sim, percebo a argumentação e partilho da mesma fé nos produtos naturais. No entanto, para sentir esse respeito pela natureza e a alegria por sentir e ver vida nas vinhas, a agricultura biológica é mais que suficiente. Ou seja, a biodinâmica pouco acrescenta quando a preocupação incide apenas sobre a sustentabilidade da terra e as boas práticas biológicas.
    E portanto, a pergunta que se impõe é – o que acrescentam os preceitos biodinâmicos que a agricultura biológica não pode oferecer?

    Abraço,

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    Rui Falcão

    June 7, 2009 at 22:22

    Hugo,

    Antes de mais, peço desculpa pela demora na resposta. Muito sinceramente, se na vinha mantenho uma razoável abertura de espírito sobre os princípios da biodinâmica, apesar de não os compreender, na adega tenho muita dificuldade em os justificar. A minha experiência de prova avisa-me que os princípios biodinâmicos na adega são, salvo raríssimos casos, um convite ao desastre. Vinhos incoerentes e inconstantes, aleatórios, com pouca capacidade de envelhecimento e com oxidações gravíssimas…
    Obrigado pelas mais que amáveis palavras de incentivo.

    Abraço,

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