Cultura do vinho

Orgulhamo-nos de possuir uma ligação profunda com o vinho, de Portugal ser um país de tradições vínicas arreigadas e memórias vastíssimas onde o vinho é parte integrante da cultura popular e erudita. Conceber Portugal sem vinho é algo tão improvável como imaginar a República Checa sem cerveja ou a Escócia sem Whisky. Ao longo de séculos moldámos a nossa civilização em redor do vinho, da agricultura à gastronomia, da arte à religião, numa aliança íntima e indissociável entre natureza e vinho, entre o homem e a terra, entre o mundano e o filosófico.

Durante séculos o vinho foi encarado como alimento do corpo e da alma, encarado com naturalidade, sem teorizações excessivas ou visões transcendentais. Habituámo-nos a beber o vinho às refeições com a alegria e a simplicidade de quem aceita uma ligação natural, com a espontaneidade de quem aceita que o vinho é um desinibidor social. Convivemos durante séculos de forma desafectada, bebendo vinho diariamente, tirando prazer da sua companhia, sem exacerbarmos a sua relevância. Em tabernas, em tascas ou à mesa, conseguimos manter uma convivência saudável com o vinho, numa fraternidade e cumplicidade quotidianas.

E depois… quase sem explicação, em menos de uma geração perdemos muitas das ligações afectivas do passado com o vinho! Deixámos de o beber no dia-a-dia e passámos a querer dissecar o vinho com demasiada intelectualidade, a sacramentalizar e complicar o que deveria ser simples e prazenteiro. Enquanto muitos outros países começaram o seu processo de aprendizagem e democratização do vinho, Portugal deu início ao sentimento de confusão e pudor! Um sentimento de vergonha assente num falso sentimento de progresso que começou a questionar a legitimidade de anos de cultura popular, afastando-nos do vinho e dos seus pretensos problemas.

Enquanto grande parte do mundo ocidental se rendia ao vinho, ao consumo do vinho dentro e fora das refeições, acostumando-se a pedir um copo de vinho na esplanada, em bares e cafés, servido em bons copos, os portugueses abandonaram por completo tal hábito. Acanhados pela suposta má fama das tascas do passado, passámos a fugir do vinho a copo como o diabo foge da cruz como que criando um constrangimento colectivo num modelo onde as tradições do passado, boas ou más, são abandonadas e apagados da memória colectiva.

Beber vinho a copo fora das refeições passou a ser razão para uma condena social, sinal exterior de ignorância e de falta de modernidade. Os poucos que perduraram na tradição refugiaram-se na intelectualidade, discutindo à exaustão castas, podas, tipos de madeira de estágio, leveduras, enriquecendo o vinho com centenas de descritores aromáticos, refugiando-se num mundo aparte e sem a simplicidade do prazer. Perdemos o respeito pelo vinho, ora troçando sobre o seu consumo, ora teorizando em demasia sobre as suas características e qualidades.

Só isso explica que nenhum português se lembre de pedir um copo de vinho numa esplanada, bar ou café. Os poucos wine bar nacionais encontram-se regularmente às moscas, ocupados maioritariamente por estrangeiros de visita a Portugal. E, no entanto, sempre que viajamos a qualquer outro país europeu apercebemo-nos da trivialidade do gesto, da banalidade e costume de beber vinho fora das refeições. Sem discursos presunçosos ou elitistas, sem demasiadas sofisticações, apenas pelo prazer do momento, pelo gozo de acompanhar uma conversa reconfortado na companhia de um bom vinho.

Durante quantos anos mais teremos de assumir as supostas vergonhas do passado, refugiando-nos em pretensas sapiências para desfrutar de algo tão simples e prazenteiro como o vinho?

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6 Comments
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    Cultura do vinho - Qual o nosso papel?

    February 22, 2012 at 14:32

    […] citações do último artigo intitulado, cultura do vinho do jornalista/crítico de vinhos Rui […]

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    ricardo

    February 22, 2012 at 14:35

    Que nós temos feito para inverter esta tendência?

    Sempre que posso tento mostrar que há pequenos detalhes que se podem alterar e nem são assim tão dispendiosos e que o cliente até vai apreciar melhor o serviço.

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    Valéria Zeferino

    February 22, 2012 at 14:50

    Confesso, Rui, que também não bebo muito vinho a copo. Não por vergonha (eu não tenho vergonha de beber vinho), mas porque sai caro. Às vezes pagar dois copos de vinho sai mais caro do que pagar a garrafa inteira! E se forem para 2 pessoas,fica caríssimo.
    Eu acho que, de um modo geral, os portugueses bebem pouco vinho. Eu não sou portuguesa originalmente e quando vim para Portugal há 11 anos fiquei surpreendida como foi possível que num país produtor de vinhos as pessoas não ligam nenhuma ao vinho? Lembro-me fui a um casamento e na nossa mesa para 10 ou 12 pessoas, so eu (única estrangeira na altura) é que bebi vinho! As mulheres beberam água e os homens serveja. E não foi a única vez. Até um amigo português explicou-me que não existe o hábito de pôr vinho às mulheres porque elas normalmente não bebem vinho.
    Em literatura que li recentemente, reparei que antigamente em Portugal o vinho fazia parte de alimentação para animar e para manter forças. Onde está este hábito hoje em dia? Porque no país com tanta tradição vitivinícola, a tradição de consumo do vinho está um pouco esquecida?

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    Hugo Mendes

    February 23, 2012 at 10:35

    Belo post. Bela reflexão.
    Pessoalmente, acho que é apenas uma questão de procura. Se o consumidor quiser e procurar, a oferta aparece, os preços regulam-se e as coisas acontecem.
    Houve no passado muitos factores que levara a esse abandono. Uma clara diabolização do vinho e das tascas, principalmente porque se deixou que se associasse demasiado os problemas de alcoolismo e das questões rodoviárias.
    Ai, o sector, no seu todo, não teve a atenção devida. Continua a olhar pouco e de uma forma individualizada.
    Poucos produtores se importam como, por quem e em que condições os seus vinhos são consumidos. O importante é que as garrafas se vendam. Pergunto. Alguém se atreve a beber cerveja num copo não apropriado, por exemplo? Foi o consumidor que exigiu a mudança, ou foi a indústria que educou o consumo.
    As coisas podem mudar. Vejo alguns sinais. É uma questão de os apoiar.
    Nisso estou com a Viniportugal quando afirma que uma das palavras de ordem é forma.
    Abraço
    HM
    Hugo Mendes recently posted..Feiras Internacionais- Abordagem IMy Profile

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    Júlio Timula

    February 26, 2012 at 12:42

    Sem dúvida uma bela reflexão. Somos um pais de excepção que produz vinhos dos melhores que existem no mundo, mas efectivamente a maioria de nós não bebe vinho com a mesma naturalidade que bebe um café ou um sumo. Pessoalmente tento inverter esta tendencia e aos poucos julgo que esta cultura está a mudar. Mesmo a questão do preço é relativa, pois tudo depende do que estamos a beber. Mas também sinto falta de mais win bar’s…O que não podemos é baixar os braços, por isso se cada um de nós for deixando as suas opiniões, vamos ajudar a mudar as mentalidades.abraço

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    Saqntiago de Bougado

    December 30, 2012 at 16:49

    O ambiente está criado. Só falta o vinho.
    No nosso país existem três classes de consumidores de vinhos.
    Os que bebem vinho;
    Os que não gostam de vinho;
    E os outros.
    A grande diferença entre eles para além de não conviverem entre si é que os que bebem vinho são os que menos falam sobre ele. Não precisam, simplesmente fazem o que gostam. Beber um bom vinho. Para quê falar.
    É tão simples quanto isto.
    O vinho a copo é mais antigo que a fundação da nossa nacionalidade. E só dizem que o vinho a copo á caro, os que não gostam de vinho e os outros. Porque os que bebem sabem bem aonde se bebe um bom vinho a copo e sem pagar tanto assim por isso.
    Aínda continua a ser nos tascos que o vinho a copo é servido. A única diferença, é que agora chamam-lhes Wine Bar’s. Os tempos são os mesmos os nomes é que são outros. Os locais, esses são mais ou menos refinados, conforme o nosso código de exigências e poder de compra, naturalmente.
    Aprendam a gostar de vinho e vão ver que locais não irão faltar para isso.

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