Barca Velha ou Grange? Novo mundo ou velho mundo?

É impossível não notar uma permanente ponta de sobranceria no discurso vinícola comum europeu, tiques recorrentes de altivez, pequenos sinais de desdém para com os novos países produtores, para com o novo mundo, para com os países que nasceram seBarca Velham a graça das castas autóctones. Ainda que de forma mais ou menos sorrateira, os pequenos indícios de jactância e presunção estão presentes em todos os discursos, em todos os comentários, nos mais pequenos gestos de vaidade.

No nosso intimo, de forma mais ou menos declarada, sentimos um leve assomo de superioridade, assente nos princípios da grande tradição europeia, na história milenar, na cultura popular e erudita do vinho, na vivência de milhares de anos, na epopeia da demarcação das denominações de origem europeias. Por muito politicamente correctos que sejamos, acabamos sempre por sentir que os países do novo mundo ainda são pirralhos, países imberbes e sem historial, nações jovens e ainda sem pergaminhos. Infelizmente, tal premissa, além de perigosa pelo falso sentimento de superioridade, assenta num pressuposto terrivelmente errado, num erro grosseiro que urge desmistificar. O caso português, ou se preferirmos, os casos portugueses, são paradigmáticos deste erro de cálculo, fruto de uma autoavaliação demasiado condescendente.

Atentemos então no vinho mais emblemático de Portugal, o mais aclamado e valorizado, nacional e internacionalmente, um dos mais ricos no historial, o duriense Barca Velha. Universalmente, será o vinho mais prestigiado e considerado de Portugal, fruto de um passado e presente tão ricos, consagrado pela longa história de colheitas publicadas. Afinal, o primeiro Barca Velha foi editado em 1952, data notável para um vinho português. Por aqui se vê a superioridade dos vinhos nacionais quando comparados com a simples adolescência dos vinhos do novo mundo, todos jovens e sem passado.

Certo? Não, profundamente errado! Basta invocar o equivalente australiano do Barca Velha, o Grange (em tempos apelidado Grange Hermitage), nascido nos confins da jovem nação australiana, país sem história nem tradição, pátria do Yellow Tail e dos vinhos sem alma… Porém, e talvez para surpresa de muitos, a primeira edição do Grange despontou em 1951, curiosamente um ano antes do Barca Velha. E, enquanto o Barca Velha só foi editado em anos excepcionais, o Grange, esse sempre foi publicado, com uma ou outra eventual excepção, ao longo destes quase sessenta anos de vida!

Afinal, onde estão o novo e o velho mundo?

11 Comments
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    Nuno Oliveira Garcia

    June 16, 2009 at 11:47

    Rui,

    É uma óptima reflexão a que propões com mais este delicioso texto.

    Mas claro, o Grange também é, em parte, uma excepção no que respeita ao «Novo Mundo». Aliás, a própria Austrália pode ser (justamente) considerada, sob alguns aspectos (eg., idade de algumas vinhas), como uma excepção no «Novo Mundo».

    – Será ainda «Novo Mundo»?

    Ab. e parabéns também pelo «Mesa Marcada».

    NOG

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    Rui Falcão

    June 16, 2009 at 14:27

    Nuno,

    Obrigado pelas palavras simpáticas.
    Seria simpático poder afirmar que o Grange não passa de uma excentricidade, a tal excepção que confirme a regra, mas o Grange está longe de ser o vinho mais antigo da Austrália, tal como a Penfolds está longe de ser o produtor mais antigo da Austrália. Basta pensar na Wyndham, com mais de 175 anos, na Yalumba, com mais de 160 anos de história, na Wolf Blass e em tantos outros, especialmente no campo dos vinhos generosos do estilo Porto, Madeira, Moscatel e Jerez.
    Mas esta não é uma matéria exclusiva de australianos. Basta pensar nos Constantia da África do Sul, vinhos com um pouco mais de trezentos anos de história, vinhos que nos séculos XVIII e XIX eram largamente exportados e considerados, alcançando preços absurdos em Londres, Paris, Berlim, etc. Ou podemos mesmo pensar nos vinhos norte americanos que, apesar da lei seca, da proibição dos anos vinte que quase destruiu a indústria vitivinícola americana, permite apresentar produtores como a Inglenook, com 150 anos de história, ou a Beaulieu com 110 anos de vida activa…
    Conheço relativamente mal, e como tal posso estar a afirmar algo errado, mas julgo que só os países sul-americanos, bem como a Nova Zelândia, não se podem orgulhar de uma história farta.

    Abraço,

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    João de Carvalho

    June 16, 2009 at 14:57

    O termo virá certamente da época das descobertas, o tal Novo Mundo que se andava a descobrir, passando para os dias de hoje vimos que os consumidores de vinho da Europa foram descobrir lá fora outras realidades, rebaptizando os vinhos com o nome que tinham utilizado para as terras.

    Mas não seja por isso, é que também temos a Velha e a Nova Europa, onde curiosamente não vejo que se utilize a expressão vinho da Nova Europa.

    Catalogamos os outros , mas não nos catalogamos a nós Europeus.

    Abraço

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    Nuno Oliveira Garcia

    June 16, 2009 at 17:10

    Rui,

    Referí-me à Austrália exactamente como um país com uma significativa história de vinho e não o contrário. Além disso, são vinhos que, como sabemos, quando equilibrados, podem ser soberbos.

    Ab.

    NOG

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    Rui Falcão

    June 16, 2009 at 19:10

    Nuno,

    Sim, sim, creio que estamos em sintonia.
    E confirmo também que os vinhos australianos podem, embora essa não seja a regra, ser verdadeiramente extraordinários. Infelizmente, os pequenos produtores são mal conhecidos na Europa, continente que ainda acredita que a Austrália só se pode medir pelos vinhos de produção dilatada, pelos milhares de litros de vinhos indiferenciados, enjoativos e xaroposos que constituem a mediania do continente australiano.
    Felizmente, existe um outro mundo para além desta face mais visível… e que representa aproximadamente 95% da produção australiana.

    Abraço,

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    Luis Pato

    June 20, 2009 at 17:53

    E esquecestes-te do que para mim é o melhor australiano, e tinha que ser um SHIRAZ das vinhas muito velhas da HENSCHEKE (boa descendencia alemã! com a precisão esperada) o Hill of Grace. Este é muito mais “europeu” que o Grange, O Grange é um vinho para “comer”, não necessita menu, o Hill mostra a elegancia dum grande Rotie.

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    Rui Falcão

    June 21, 2009 at 22:35

    Luis Pato,

    Indiscutivelmente, os vinhos do casal Henschke são notáveis, tanto o Hill of Grace como o Mount Edelstone (ainda há pouco abrimos um de 1996 aqui em casa). Até os Keyneton e Cyril são bem interessantes…
    Não sei se subscrevo na íntegra isso de serem os melhores australianos, mas estão decididamente no restrito grupo de elite. É que também me confesso igualmente apaixonado pelos Yarra Yering, 1 e 2, pelos Cullen (mais recentes) e pelos vinhos do Roman Bratasiuk, os Clarendon Hills… de que, curiosamente, o Astralis é o que menos me seduz!
    Bem sei que o estilo é totalmente diferente, muito mais madurão e “australiano”, mas não escondo que também gosto muito dos Eillen Hardy’s, Armagh, Nine Popes e amigos…

    Abraço,

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    Pedro Guimarães

    June 22, 2009 at 10:54

    Caro Rui Falcão,

    Acho que utilizar o Barca-Velha como exemplo “Velho Mundo” em termos de antiguidade é bastante redutor…O Grange, sendo um grande vinho, é um adoloscente comparado com os grandes vinhos de Bordéus, Borgonha, Rhone, Alsácia, Alemanha, etc…locais onde a antiguidade do termo “Velho Mundo” faz todo o sentido.

    Abraço,

    Pedro Guimarães

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    Rui Falcão

    June 22, 2009 at 11:22

    Pedro Guimarães,

    É com certeza abusivo… mas propositado. Restringi-me ao exemplo português, o mais fácil de identificar, tal como me cerceei ao exemplo do Grange, por ser o vinho mais simbólico da Austrália e por ser o que mais se aproximava do Barca Velha nas épocas e prestígio interno. Grange que está longe de ser o vinho mais velho da Austrália. O artigo é deliberadamente provocatório, um alerta para um falso sentimento de indelével superioridade que sentimos face aos vinhos do novo mundo.

    Em Portugal teria sido mais seguro apostar no Periquita, vinho com quase 160 edições engarrafadas. Mas como já tive ocasião de replicar, também a Yalumba tem 160 anos de história engarrafada e a Wyndham 170 anos de história, tal-qualmente engarrafada. E pode provar vinhos de Constantia com um pouco mais de 300 anos…

    Apesar do tom moderadamente cáustico do artigo, a verdade é que o novo mundo não é forçosamente assim tão novo e tão imberbe como gostaríamos de pensar. E é perigoso alimentar falsos sentimentos de superioridade, sobretudo quando a realidade se encarrega de rebater os argumentos que, supostamente, a fundamentam.

    Abraço,

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    Luis Pato

    June 23, 2009 at 20:38

    Com os vinhos da Vania Cullen deixas-me calado. É uma verdaeira sinfonia de violinos. Sabias que alenm de ser filha de mádico a Vania abandonou a sua carreira de Violinista para se dedicar ao vinho após a morte do pai? Encontramo-la quando a Filipa estava vizinha.

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    Rui Falcão

    July 1, 2009 at 16:23

    Luis Pato,

    Desconhecia por inteiro essa faceta da Vanya Cullen. Pois é, a Filipa esteve ali mesmo ao lado…
    Anteontem abrimos aqui em casa um Clarendon Hills Old Vines Grenache de 1998, de vinhas velhas de 80 a 110 anos de Grenache, em taça. Talvez demasiado australiano no eucalipto, mas impressionante na expressão e profundidade. Claro que o Frédéric Mugnier Clos de la Maréchale 2004 que veio a seguir abafou-o, mas…

    Abraço,

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