Santorini

Santorini ergue-se áspera das águas azuis e cristalinas do mar Egeu num dramatismo estonteante. Na ilha sobrevivem os testemunhos vivos de um passado geológico tumultuoso que reverteu, há cerca de 3.500 anos, na explosão trágica de metade da ilha. Os ecos da distante erupção vulcânica mantêm-se ainda hoje perceptíveis nas fumarolas que se erguem das pequenas ilhas adjacentes, na enorme caldeira central inundada, na crónica falta de água doce, nos solos vulcânicos paupérrimos, despidos de vegetação e matéria orgânica, assolados pelos temíveis e recorrentes ventos do mar Egeu.

E no entanto é aqui, na paradisíaca e simultaneamente inóspita ilha de Santorini, que nascem alguns dos vinhos brancos mais excitantes do mundo. Dispersas pelo interior de Santorini subsistem hoje mil hectares de vinhas muito velhas, a maioria centenárias, isoladas no pequeno mundo rural que ainda não foi tomado pela sofreguidão de hotéis e agentes turísticos que enchem a ilha. É aqui, neste ambiente adverso e quase estéril onde nem as ervas daninhas conseguem sobreviver, que perdura uma das mais interessantes castas brancas do planeta, a Assyrtiko, variedade indígena da ilha. Uma casta impulsiva e com temperamento de Diva, difícil… mas irresistível! É reconhecida pela acidez eléctrica, pelo corpo cheio e pela enorme frescura, pela mineralidade e pela quase ausência de aromas primários de fruta.

Poderá até não impressionar muito. Mas é precisamente essa acidez felina, o volume, o álcool e o extracto seco que lhe proporcionam condições naturais para crescer em garrafa durante décadas, condição pouco habitual nos vinhos brancos mediterrânicos. Subtileza e veemência, dois conceitos que raramente viajam em parceria, são os dois grandes predicados do Assyrtiko, proporcionando vinhos excitantes que renovam a fé humana no conceito de terroir.

Como é que as vinhas de Assyrtiko conseguem sobreviver na aspereza de Santorini, sem água, persiste um mistério insondável. O solo vulcânico despido de vegetação, sem matéria orgânica, numa paisagem ventosa e quase lunar, não aceita outras colheitas que não a vinha. De tão pobre, seca e estéril, Santorini nunca foi acometida por qualquer doença da vinha, mantendo-se imune aos efeitos do míldio, oídio, podridão e filoxera! Por isso as vinhas centenárias da ilha mantêm-se plantadas em pé-franco, sem porta enxertos, numa ilha onde o uso de pesticidas nunca foi necessário! Cultura orgânica no estado mais puro e exacerbado! Que uns quantos produtores meio loucos perdurem nesta aventura de fazer vinho em Santorini, sob condições tão difíceis, é uma ventura.

Três produtores destacam-se claramente na legião de pequenos produtores da ilha, Sigalas, Gaia e Boutari, aqui e ali acompanhados pelos ditosos vinhos da Adega Cooperativa de Santorini. E no final do dia pode sentar-se a beber um dos vinhos mais assombrosos do mediterrâneo, o Vinsanto de Santorini (sem parentesco com o Vin Santo italiano), um vinho licoroso e estruturado, criado com as preciosas uvas da casta Assyrtiko, vinhos evocativos dos velhos Moscatel de Setúbal… com uma acidez e frescura desconcertantes.

5 Comments
  • avatar

    Hugo Mendes

    January 19, 2012 at 16:46

    No fim de ler a descrição só me veio à cabeça… Eh Pá! O Rui Falcão descobriu a ilha de Avallon dos vinhos brancos… ou melhor, para quem como eu é fã do imaginário de Tolkien…. Valinor!
    Não havia brumas na viagem? Eh! Eh! Eh!
    Fiquei curioso. Fica registado nas minhas “viagens a fazer”. Obrigado pela dica.
    Só uma pergunta. E as gentes são afáveis, abertas à partilha de conhecimentos?
    Abraço

  • avatar

    Rui Falcão

    January 19, 2012 at 17:01

    Hugo, as pessoas que estão ligadas ao vinho são hospitaleiras, sobretudo na adega. Na vinha o contacto nem sempre é fácil. As pessoas ligadas ao turismo, depende. Há que perceber que Santorini é um dos grandes destinos turísticos do mundo e é inundada de turistas durante os meses de Verão. No Inverno está quase deserta. Os locais, apesar de viveram quase exclusivamente do turismo, nem sempre têm paciência para a horda de excursionistas diários, o que é relativamente vulgar nos sítios muito massificados. Mas no interior árido, onde poucos vão, e onde estão as vinhas, as coisas mudam. Aí as maiores dificuldades podem vir da dificuldade de comunicação e de alguma desconfiança natural.
    Não faço ideia se os enólogos e produtores locais são muito dados à partilha de conhecimentos ou não, já que a questão raramente se coloca a mim. Mas as características da ilha são tão, tão especiais, que presumo que os ensinamentos locais nem sequer tenham aplicação a nenhum outro sítio.
     

  • avatar

    Valéria Zeferino

    January 20, 2012 at 14:46

    Rui, obrigada pela informação. A sua descrição e muito poética, envolvente. Não fazia mínima ideia desta casta. Fiquei curiosa por provar um dia os vinhos que produz.

  • avatar

    Patrícia Venâncio

    January 25, 2012 at 19:36

    Impressionante! Só mesmo a resistência e generosidade da vinha para conseguir sobreviver em situações tão adversas!
    Fiquei extremamente curiosa acerca dos vinhos.

  • avatar

    Rui Falcão

    January 26, 2012 at 19:38

    Valéria e Patrícia, o Assyrtiko é realmente uma das grandes castas brancas do mundo, a par do Riesling, Chenin Blanc, Grüner Veltliner, Alvarinho e as incontornáveis Chardonnay e Sauvignon Blanc. A grande diferença do Assyrtiko para as restantes grandes castas brancas do mundo é que é uma casta branca de uma região quente, conseguindo manter acidez, corpo e frescura apesar de ser uma variedade mediterrânica, de climas quentes extremados.
    E sim, as vinhas de Santorini são um monumento à tenacidade da videira, capaz de sobreviver onde nenhuma outra planta conseguiria resistir.
     

Post a Comment

CommentLuv badge