Manipulações e provocações…

Os ideais clássicos e arrebatados do romantismo permanecem intimamente associados à lírica do vinho, à magia do vinho, à ligação telúrica e quase divina entre homem, natureza e vinho. Associação especialmente palpável no vínculo religioso cristão entre vinho e sangue de Manipulações e provocaçõesCristo, valores indeléveis impregnados na tradição cultural europeia. Para nós, europeus, sobretudo mediterrânicos, o vinho é uma bebida quase sagrada, parte indissociável da nossa cultura…

Falar de vinho em concordância com termos como manipulação ou intervenção humana continuam a ser temas tabu, temas proscritos na intelectualidade e vox populi europeias. Qualquer sugestão de manipulação na adega, mais ou menos clássica, mais ou menos agressiva, mais ou menos tecnológica, mais ou menos corriqueira, continua envolta em mistério, em recato, na mais profunda discrição, escondida de jornalistas e público, encoberta por décadas de preconceitos e desconfianças. Como se o vinho não fosse um produto do homem, do iluminismo e da racionalidade humana, fruto da astúcia e da intervenção humana, da interposição e mediação humana em todos os passos, em todos os pequenos detalhes.

Porém, por desconfiança irracional e instintiva, continuamos a encarar a intervenção humana na adega com assumida desconfiança, com um eterno franzir de sobrolho, com o temor ancestral que a palavra manipulação continua a provocar. Curiosamente, e também convenientemente, esquecemo-nos das múltiplas intervenções e manipulações que o homem impõe à vinha. Diferentes conduções, a utilização de rega, a poda, os enxertos, a utilização de sistémicos, de produtos biológicos ou tisanas, as vinhas híbridas, os cruzamentos artificiais, a monda em verde, a gestão foliar da copa, as desfolhas, são alguns dos muitos processos de intervenção na vinha que aceitamos com naturalidade…

Pergunta filosófica – porquê esta disparidade de critérios? Porque é que aceitamos sem sobressaltos a manipulação na vinha, a maximização da expressão do terroir, enquanto tememos e rejeitamos a manipulação na adega? Porque abraçamos com entusiasmo a casta Alicante Bouschet, fruto de um trabalho forçado de laboratório, uma criação artificialmente inventada pelo homem… enquanto nos aterrorizamos com a adição de água para diminuir o grau alcoólico?

Não, ao contrário das artes e da filosofia, o romantismo no vinho não morreu no final do século XIX…

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5 Comments
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    Elizabeth Rato

    July 1, 2009 at 22:31

    Eu diria mesmo que o vinho é uma verdadeira obra de arte criada, manipulada e exclusiva do ser humano… cada produção com a sua filosofia… relativamente ao romantismo, penso que o encontramos sempre no vinho que mais nos surpreende e que mais nos dá prazer.

    Cumprimentos

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    Joel Carvalho

    July 2, 2009 at 13:44

    Talvez não damos tanta importancia às intervenções na vinha porque pensamos que não afectam directamente na produção de vinho, mas quando vemos a utilização na adega, mecanismos como o polvo e aparas de madeira (por exemplo) ficamos chocados e logo rejeitamos esse produto ou o vemos com grande desconfiança…

    Mas como diz neste texto, são tabus, ideias bem vincadas nas mentes de muitos e contra isso é muito dificil de combater.

    Abraço,
    Joel Carvalho

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    Vitor Mendes

    July 4, 2009 at 11:36

    Na verdade, creio que o chavão dos produtos biológicos, ou de escassa manipulação humana (leia-se química), interfere de forma muito activa a forma como as pessoas encaram o vinho. Ou seja, efectivamente existe ainda a ideia que qualquer vinho para ser de alta qualidade deverá ter o mínimo de intervenção humana. Por isso mesmo julgo que seria muito interessante divulgar cada vez mais de forma simples mas mais concreta a forma como os vinhos são produzidos em adega. Neste momento estou a ler uma obra, de um reputado enólogo, e a cada página que leio me surpreendo com a quantidade de operações, controles e correcções necessárias para se poder ter um produto final de alta qualidade. É verdade que a matéria prima, a uva, é fundamental, o seu tratamento na vinha e durante o seu crescimento é fulcral, mas fazer um bom vinho é muito mais que deixar a que a fermentação seja apenas um fenómeno da natureza…

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    Hugo Mendes

    August 9, 2009 at 19:10

    Muito bem Rui,
    Abaixo a hipocrisia e a cultura do segredo!

    Vítor:
    Não quer partilhar connosco o título e autor do livro?
    Hugo Mendes

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    Valéria Zeferino

    February 15, 2012 at 10:15

    Acho que não tenho um background suficiente para me pronunciar sobre o assunto.
    O meu comentário dirige-se ao Vítor Mendes: também gostava de saber qual é o livro que referiu.

    Obrigada!

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