Rui Falcao - Vinhos que contam historias

E se o Vinho do Porto olhasse para a Hungria?

Não é fácil olhar para a Hungria como modelo de inspiração social, sobretudo desde a recente cedência a uma deriva populista e autocrata que a converteu numa espécie de pária da União Europeia. Mas se no capítulo social a Hungria não profetiza qualquer modelo atraente o mesmo não se passa no mundo do vinho onde as autoridades húngaras pressagiam mudanças legislativas e filosóficas que merecem uma reflexão profunda e que poderãoRui Falcao - Vinhos que conm historias ajudar a projectar o futuro do vinho mais emblemático de Portugal, o Vinho do Porto.

Comecemos por falar dos vinhos de Tokay, vinhos de tradição e nobreza antiga, vinhos brancos doces que fazem parte da lista muito curta da elite vínica mundial, vinhos que se encontram entre os mais cobiçados e comentados do mundo. O orgulho húngaro pelos vinhos de Tokaji é de tal forma exorbitante que as suas qualidades e predicados são louvados na letra do hino nacional. A região encaixa-se no nordeste do país, no sopé das montanhas Zemplén, junto à fronteira com a Eslováquia, e especializou-se na produção de vinhos brancos doces de colheita tardia desde 1730, vinhos de podridão nobre que são localmente qualificados como Aszú.

Para poderem ser proclamados como Aszú as uvas das duas castas principais, Furmint e Harslevelu, têm de estar infectadas com o famoso fungo Botrytis Cinerea, o mesmo que afecta os vinhos da região francesa de Sauternes e os famosos Beerenauslese e Trockenbeerenauslese alemães, apresentando um teor de mínimo açúcar de vinte gramas por litro. Estas uvas vindimadas tardiamente são maceradas e esmagadas em pequenos “baldes” com capacidade para 25 quilos de uvas denominados localmente como puttonyos. Ao vinho base, estagiado em velhas barricas ou depósitos de 136 litros de mosto que dão pelo nome de Gonc, são adicionados posteriormente três, quatro, cinco ou seis puttonyos ou, de forma mais despretensiosa, são adicionados três, quatro, cinco ou seis baldes de 25 quilos de mosto de uvas afectadas pela podridão nobre.

Necessariamente quanto mais puttonyos forem adicionados ao mosto maior será a doçura final do vinho, com maturações totais que em função da doçura do vinho costumam tardar entre cinco e oito anos. Existe ainda um designativo especial e relativamente raro de 7 puttonyos, vinhos extremamente doces que correspondem comercialmente ao designativo Tokaji Aszú Esszencia que não deve ser confundido com o muito mais raro e muito mais caro Tokaji Esszencia. Os Tokaji Esszencia são vinhos raros e excêntricos, voluptuosos e opulentos, densos e quase decadentes que de tão poderosos e ricos raramente conseguimos beber mais que um pequeno trago de cada vez.

São vinhos absolutamente indestrutíveis, um pouco na senda dos grandes vinhos da Madeira, embora nos Tokaji a conservação natural provenha do açúcar em lugar da acidez viperina que caracteriza os vinhos da Madeira. São vinhos tão doces e opulentos que enquanto os Tokaji Aszú Esszencia alternam entre as 180 e as 230 gramas de açúcar residual… os Tokaji Esszencia podem ascender ao valor quase irreal de 800 gramas de açúcar residual muito embora existam registos de alguns vinhos com concentrações superiores a 900 gramas de açúcar residual.

Enquanto os vinhos mais simples, de três e quatro puttonyos, são baratos e de acesso fácil graças à massificação da produção, os vinhos das categorias superiores são raros, caros e de produção muito limitada. Enquanto os vinhos Tokaji mais simples podem ser comprados a partir de valores próximos a 5€ as categorias especiais podem começar nos três dígitos chegando mesmo a aproximar-se dos quatro dígitos nos vinhos mais exclusivos e considerados, num paralelismo fácil de exercer com o Vinho do Porto.

A grande reviravolta desta denominação de origem, uma das mais antigas do mundo a par do Vinho do Porto, sucedeu há cerca de seis meses quando o conselho regulador da denominação alterou profundamente as regras Rui Falcao - Vinhos que contam historiasdo jogo. Com efeito, e para além de um número considerável de pequenas alterações de menor alcance mas de afirmação inequívoca, como uma inflexão na lista de castas permitidas que passou a valorizar de forma mais explícita as variedades mais antigas de Tokaji, a região quebrou o grande tabu de séculos suprimindo formalmente as duas categorias inferiores, as famílias três e quatro puttonyos. Uma mudança radical na filosofia e uma revolução no modelo de produção, viticultores incluídos, que a par da onda natural de protestos levantou uma vaga de aprovação.

A denominação pretendeu com esta medida extrema fugir à banalização do nome Tokaji, escapar da guerra de preços que desvalorizou o nome de uma região inteira quando os vinhos começaram a chegar às prateleiras a menos de dez euros, salvar-se da depreciação do prestígio de um nome apostando na revitalização do encanto do passado. Uma transformação arriscada e com um potencial de agitação social elevado, uma mudança difícil mas que os responsáveis da região consideraram indispensável para o futuro da região.

E é aqui que o paralelismo com o Vinho do Porto se torna ainda mais dramático numa região que vive problemas e desafios semelhantes e onde os pontos de contacto entre as duas regiões são demasiado próximos para nos querermos escusar a analisar a solução húngara. Talvez esta não seja a solução ideal e talvez não seja aplicável ao Douro. Mas a região vive momentos difíceis e precisa seguramente de alterar o seu modelo de produção. Como é possível conciliar que o mesmo vinho de prestígio que propõe alguns vinhos a mais de 4.000€ possa ver aeroportos do mundo inteiro a propor vinhos do Porto a 2,99€? Como é possível conciliar as categorias especiais de Vinho do Porto, vinhos com indicação de idade, Colheitas, LBV ou Vintage com os vulgares Tawny e Ruby de entrada que podemos encontrar em qualquer supermercado a valores que raramente ultrapassam os 4€?

A solução não é fácil, os problemas da região são extremamente complexos, as implicações sociais e económicas de cada mudança são problemáticas e dolorosas para Gaia e para o Douro. Mas é inegável que a região e o Vinho do Porto precisam de mudanças urgentes e que esta reviravolta húngara pode servir de modelo de reflexão para aquela que é a denominação mais antiga do mundo.

1 Comment
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    Daniela Giuliboni Coelho

    October 3, 2014 at 06:15

    Acho isso bem complexo,será que o vinho do porto não perderia a sua identidade????? Obrigado por esse texto maravilhoso!!!!

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