Património nacional

As caixas de correio são constantemente submersas por dezenas de notícias sem sentido e sem qualquer interesse, , para além de mensagens de promoção não solicitadas, notícias feitas à conveniência de agências de comunicação que se entretêm a lançar comunicados de imprensa sobre todos os temas possíveis que a humanidade consiga imaginar. Entre as dezenas de mensagens diárias recebidas em cada conta de email por vezes encontramos algumas verdadeiras pérolas, no bom e no mau sentido da palavra.

Entre as notícias mais frescas a deixar-me em tal estado de espírito conta-se a referência a uma vinha francesa de pouco menos de meio hectare que terá recentemente recebido honras de património de estado, tendo-lheRui Falcao- Wine sido atribuída a classificação oficial de monumento histórico. A pequena parcela de vinha de que não se sabe bem a idade, mas que se suspeita ter sido plantada algures entre os anos 1800 e 1830, está sita na denominação de origem relativamente obscura de Saint-Mont, na região de Gers, no sudoeste francês, uma faixa vinícola pouco valorizada localizada já perto da orla dos Pirenéus, um pouco a norte da denominação Madiran.

O que torna esta vinha tão especial é, para além da sua idade mais que respeitável, o facto de ter resistido à filoxera permanecendo ainda hoje em pé-franco, sem o recurso habitual a um porta-enxerto de vinha americana, bem como a forma invulgar e quase caótica como está plantada, sem direcção certa e sem alinhamentos artificiais, seguindo o contorno do relevo de forma absolutamente natural. Encontrar uma vinha realmente velha em França, sem compasso nem lógica aparente na condução, plantada em pé-franco, é algo que só por si poderia ser tema de relato… mas que dificilmente seria argumento suficiente para a elevar à condição de monumento histórico.

O que verdadeiramente singulariza esta vinha francesa é a forma como as diferentes castas foram plantadas numa estranha harmonia que aceitou misturar as diferentes variedades, combinando castas brancas e tintas na mesma parcela, evidenciando algumas castas antigas das quais muitas nem se lhe conhecem o nome. Com a parcimónia e o entusiasmo que caracterizam este tipo de notícias as fontes dividem-se quanto ao número de castas presentes nesta parcela, com os números a variar entre um pouco mais de uma vintena e mais de uma centena de castas, dividindo-se ainda no número de castas desconhecidas presentes nesta vinha, variando as estimativas entre as sete e uma trintena de castas.

Sim, é algo que nos soa familiar e que para nós portugueses dificilmente seria tema de conversa e muito menos de celebrações oficiais. Afinal, o que mais temos são vinhas velhas e muito velhas, a maioria das quais misturadas numa saudável anarquia que as protege dos humores da natureza e das variações climáticas anuais. E no entanto, quem sabe se por excesso de proximidade, não conseguimos perceber o tesouro que temos entre mãos, a sorte que nos foi passada pelos antepassados, a fortuna que herdámos e que tanto gostamos de desbaratar.

Quando vemos uma vinha francesa ser elevada a património histórico, quando vemos uma vinha austríaca de características semelhantes, embora de idade muito mais comedida, ver os seus vinhos vendidos a preços elevados, não deveria ser difícil compreender o imenso potencial de que dispomos um pouco por todo o país. Sobretudo no Douro, mas também um pouco pelo Dão, Bairrada, Beiras e Alentejo espalham-se vinhas velhas misturadas onde raramente conseguimos identificar todas as variedades e onde poderemos encontrar castas desconhecidas e clones há muito perdidos na viticultura moderna.

Numa época em que somos quase diariamente atormentados com o alegado problema do aquecimento global, quem sabe se parte da resposta não estará presente nestes clones e castas caídas em desuso, habilitados com a experiência de mais de um século de vida de adaptação contínua a climas extremados e inclementes? Não, não será muito difícil perceber a relevância destas vinhas que em outros países são consagradas como património Rui Falcao - Winenacional.

Ora o que andamos nós a fazer com este património de riqueza incalculável e de valorização fácil que nos foi deixado pelas gerações anteriores? Bom, salvo as devidas mas infelizmente raras excepções, temo-nos entretido a destruí-lo sem critério, arrancando muitas das vinhas velhas misturadas e sem serem misturadas, substituindo as vinhas velhas por castas populares e da moda, algumas das quais de origem estrangeira. Dando sinais de mais um tique de provincianismo e de presunção de um falso modernismo, que no fundo não revelam mais que uma total falta de rectitude, vamos desprezando e paulatinamente destruindo o que demorou séculos a ser feito e conservado, incapazes de compreender a sumptuosidade, raridade e rentabilidade do que temos em mão.

Com aparente alegria vamos arrancando vinhas centenárias da casta Baga para plantar vinhas novas com a casta francesa Merlot que nunca provou nada em Portugal e que será mais uma entre tantas, vamos arrancando vinhas velhas no Dão para plantar mais um talhão de Touriga Nacional, como se precisámos de espaço para plantar mais Touriga Nacional, vamos arrancando vinhas velhíssimas e misturadas no Douro para plantar Touriga Nacional, Touriga Franca e uns pés de Cabernet Sauvignon e Syrah, porque sem as castas estrangeiras o duo das Tourigas não seria o mesmo, vamos arrancando vinhas velhas e misturadas em Portalegre e Reguengos para mais uma parcela de Alicante Bouschet e Syrah, eventualmente com um cantinho reservado para uns quantos pés de Touriga Nacional. Estranho país, este…

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