Colares

Colares é um caso exemplar e consumado de romantismo puro, um equívoco mais que perfeito, um monumento à perseverança do homem mas também um hino à loucura e à irracionalidade. Aparentemente, nada faz sentido em Colares e o desafio à lógica é uma constante da denominação. O que poderia ter levado alguém a plantar vinhas em chão de areia solta, com o chão firme a tamanha profundidade? O que poderia ter levado alguém a plantar vinhas num clima de influência atlântica tão extremada? O que poderia ter levado alguém a apostar nas castas tintas num clima tão fresco e húmido, surpreendido por neblinas permanentes, com tão poucas horas de sol diário? O que poderia ter levado alguém a eleger uma casta tão caprichosa como o Ramisco, de maturação tardia, numa região de clima fresco? O que poderia ter levado alguém a plantar vinhas num dos locais mais ventosos e agrestes da costa, a meia dúzia de metros do temível embate do Atlântico?

Racionalmente, Colares é um perfeito contra-senso. Os resultados, de acordo com a lei das probabilidades só poderiam ser calamitosos, desastrosos nos vinhos ali produzidos. No entanto, num desafio a toda a lógica e coerência racionais, os vinhos de Colares encontram-se entre os vinhos mais interessantes e temperamentais do mundo. Afirmo-o não como uma simples declaração de paixoneta mas por convicção, assente na enorme complexidade e personalidade dos vinhos de Colares, na magia de descobrir vinhos intemporais, francos e complexos, de recorte fino e expressão dura, vinhos clássicos que conseguem ser simultaneamente rudes e elegantes.

Uma visita a Colares é suficiente para explicar as incoerências da denominação… e as dificuldades da localização. Vinhas velhas, quase sempre centenárias, plantadas em solos arenosos de areia fina e solta, com solos que por vezes se encontram a mais de seis metros de profundidade. Por se situar junto ao mar, presa fácil dos fortes ventos marítimos, a vinha tem de adoptar uma condução quase rastejante, condição necessária para conseguir sobreviver à severidade marítima. Apesar da condução rasa, para a sobrevivência da videira são necessárias pequenas paliçadas de canas dispostas de forma intervalada pelas vinhas, expedientes que funcionam como barreiras naturais à fúria dos vendavais.

Mas, por assumirem uma condução rasteira, os cachos ficam em contacto com o chão de areia quente, o que obriga que cada cacho tenha de ser suavemente alçado com uma cana, cacho a cacho, numa operação cara e demorada. Se a tudo isto somarmos uma casta tão difícil como a Ramisco, com uma produtividade ridícula, uma acidez pungente e uma maturação tão tardia, uma casta que tem de desenvolver um esforço notável para conseguir amadurecer, percebe-se que Colares tem tudo contra si! Até mesmo a sua localização junto a Lisboa, à praia e à Serra de Sintra, num dos pedaços de costa mais apetecíveis para a construção de casas e hotéis.

No entanto Colares oferece vinhos encantadores, vinhos autênticos que combinam uma certa dose de ingenuidade com um carácter peculiar. São jóias vivas do nosso património, vinhos originais e de uma autenticidade e identidade espantosas. Claro que, por serem tão diferentes, costumam ser incompreendidos, por vezes injustiçados. Têm pouca ou nenhuma fruta e costumam apresentar-se terrosos, salinos, com pouco álcool, secos e duros, ao revés das tendências contemporâneas. Mas podem ser brilhantes, infinitamente superiores ao que poderíamos esperar face a tamanha adversidades.

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8 Comments
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    silvestre tavares gonçalves

    February 8, 2012 at 12:31

    Rui, adoro vinhos de colares. São vinhos saborosos e longevos. Tive a oportunidade de provar um da safra 1934, veja > http://www.vivendoavida.net/?p=3421

    Abs e Saúde

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    Rui Falcão

    February 9, 2012 at 13:15

    Silvestre, sem dúvida, os vinhos de Colares podem ser extraordinários… como esse que você provou.
    Abraço,
     

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    Valéria Zeferino

    February 9, 2012 at 13:42

    Confesso que não conheço, ou quase não conheço vinhos de Colares, pelo menos não me lembro de os ter bebido propositadamente. Já li em várias fontes sobre estes vinhos que vão contra toda a lógica e acho que conhecê-los é indispençsável para educar o meu paladar.
    Sabe onde é possível comprar/provar vinhos de Colares já com alguma idade?
    Obrigada!

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    Patrícia Venâncio

    February 9, 2012 at 14:52

    Eu diria que só a generosidade, resistência e teimosia da videira, a sua capacidade de nos surpreender a cada dia em condições muitas vezes tão adversas. Reflectem que a racionalidade e a técnica comum é tantas vezes colocada em causa, deixando-nos a todos (técnicos,enólogos e apreciadores) “presos” a este mundo da vitivinicultura.
    Patrícia Venâncio recently posted..Os Aromas da Arinto /PedernãMy Profile

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    Rui Falcão

    February 9, 2012 at 15:51

    Valéria, encontrar vinhos de Colares relativamente antigos, bem como alguns exemplares mais antigos, com mais de 30 anos de idade, não é tarefa muito complicada. Para além de poder procurar na região, em Colares e em Sintra, é relativamente fácil descobri-los em leilões ou nas garrafeiras de Lisboa que costumam ter o cuidado de ter vinhos mais antigos. Entre outras, a Garrafeira de Campo de Ourique e a Garrafeira Nacional serão bons pontos de partida para a ajudar.
     

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    Rui Falcão

    February 9, 2012 at 15:57

    Patrícia, concordo que a videira é uma das plantas mais imprevisíveis e imprevistas da natureza, capaz de nos surpreender com a sua adaptação às condições mais extremas. Mas temos igualmente de conceder crédito e mérito ao homem, à loucura de plantar vinhas nestas condições, à capacidade para lutar e ser capaz de contornar uma natureza tão severa.
     

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    Valéria Zeferino

    February 9, 2012 at 16:32

    Obrigada, Rui.
    Leilões não é opção apropriada para mim, mas vou procurar nas garrafeiras que indicou.

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    Patrícia Venâncio

    February 10, 2012 at 00:42

    Sem dúvida, o que eu me referia é que mesmo sob essas condições e claro a tenacidade e coragem e o acreditar, do Homem em plantar vinhas sob essas condições, condições que muitas vezes nós técnicos desaconselhariam, resultaram em coisas tão fantásticas.

    Aqui em Portalegre, ainda existem algumas vinhas centenárias, infelizmente cada vez menos, em patamares, conciliadas com olival e tantas outras culturas. Esse património está a desaparecer aos nossos olhos sem nada fazer-mos para reverter essa situação.
    Por isso admiro tanto o trabalho, que tantos de “nós” consideramos amadores e aventureiros, mas que marcaram as características de uma região.
    Patrícia Venâncio recently posted..Press Release – Herdade das ServasMy Profile

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