Rui Falcao

Acidez, a palavra certa

Para além de espirituoso, intelectual e fruto mais puro do génio criativo e civilizacional da cultura ocidental, o vinho é hoje consensualmente tido como uma bebida salutar, benéfica para o sistema vascular e para o corpo de uma forma genérica, para além de proveitosa para a condição espiritual humana. O vinho refresca o corpo e a alma, relaxa e alivia o corpo enquanto eleva, aquece e acaricia a alma, desde que, evidentemente, bebido em moderação e de forma responsável.Rui Falcao

Um bom vinho deverá ser tendencialmente refrescante e a frescura deverá ser mesmo encarada como uma das palavras mais importantes na definição de um vinho… independentemente do estilo do mesmo vinho. Mesmo os vinhos tintos mais pesados, os vinhos fortificados, os vinhos reconhecidos como vinhos de Inverno, precisam de uma acidez viva para se tornarem convidativos, para induzir a beber mais um copo com alegria, para serem apetecíveis e refrescantes em lugar de enfadonhos ou pura e simplesmente opressivos e enjoativos.

Todos os vinhos possuem alguma acidez natural provocada pelas uvas embora muitos acabem por penar as amarguras do inferno por esta se apresentar demasiado diluída ou enfraquecida. Se um vinho não seduzir e não estimular a mais um copo então o resultado final terá de ser considerado um insucesso independentemente do eventual pedigree de que o vinho possa desfrutar.

Quando os enólogos são forçados a corrigir a acidez de um vinho, seja para a atenuar seja para a intensificar, condição relativamente frequente nas regiões vinícolas mais quentes ou em anos que sejam atingidos por ondas de calor excepcionais, as escolhas costumam recair no ácido tartárico ou, menos habitualmente, em ácido cítrico ou ácido ascórbico. Cada um destes ácidos tem um perfil de sabor específico que denuncia o seu uso, sobretudo se for concluído de forma pouco habilidosa.

Enquanto concentrações demasiado elevadas de ácido cítrico podem sobrepor notas limonadas e demasiado citrinas, uma concentração alterosa de ácido láctico poderá acrescentar notas amanteigadas ou lembranças gustativas de iogurte. O ácido málico evoca por sua vez a presença de maçãs verdes oferecendo uma acidez mais agressiva, enquanto o ácido tartárico apresenta a acidez mais redonda e homogénea de todas as dezenas de ácidos presentes no vinho.

De uma forma muito genérica e simplista poderemos afirmar que quanto maior for a concentração de ácidos no vinho, desde que gerida de forma subtil e harmoniosa, maior será a sensação de frescor e viço, maior a sensação de leveza e energia. Nos vinhos nacionais a presença da acidez é mais evidente nos frescos e verdejantes vinhos da região do Vinho Verde, nos luxuriantes vinhos espumantes produzidos nas regiões do Vinho Verde, em Távora-Varosa e Bairrada bem como na inimitável e prodigiosa região da Madeira.

A inclusão dos dois últimos estilos mencionados, espumantes e Vinho da Madeira, poderá surpreender numa discussão sobre acidez, especialmente no caso das castas Boal e Malvasia que apresentam teores de açúcar muito elevados. No entanto, é precisamente nestes dois estilos de vinhos que o conceito de acidez se torna ainda mais relevante e decisivo, estruturante para o carácter dos vinhos, indispensável para assegurar o vigor e tensão que garantem uma boca ágil e irrequieta em lugar do tédio e do aborrecimento do açúcar.

Por si própria a acidez não é nem um fim nem uma benesse estando obrigada a relacionar-se com os restantes elementos do vinho. Um vinho simplesmente ácido dificilmente será agradável e muito provavelmente será apenas magro, acre, amargo e áspero. Nos vinhos espumantes a acidez pungente do vinho base surge equilibrada pelo gás, pelo açúcar da dosagem e pelas leveduras da segunda fermentação. Nos vinhos da Madeira mais ricos, sobretudo os Boal e Malvasia, a acidez dilacerante equilibra a doçura que de outra forma daria lugar a um vinho simplesmente indolente e enjoativo.

Rui Falcao - AcidezSão muitos os vinhos que têm a fortuna de conseguir mostrar-se simultaneamente refrescantes e tonificantes, sobretudo em Portugal. Entre estes incluem-se de forma particular os vinhos da Bairrada e do Dão, vinhos brancos e tintos onde a fruta farta, o açúcar e o álcool conseguem ser generosamente compensados por uma acidez vivaça que os conduz a um final arrebatador. A maioria dos grandes vinhos do Douro e do Alentejo conseguem reproduzir este perfil anunciando uma acidez competente que por vezes chega a ser posta em causa pelos excessos de maturação que alguns vinhos exibem de forma ostentatória.

Os melhores, porém, mantêm-se como sempre deveriam ter sido, sobretudo quando ganham a tarimba de alguns anos de vida em garrafa oferecendo vivacidade e postura, vigor e peso, complexidade e profundidade, alegria e complexidade que só a acidez pode proporcionar. Vinhos como os Charme, Poeira, Quinta da Gaivosa ou Barca Velha do Douro, vinhos como os Quinta do Carmo Garrafeira do passado, Quinta do Mouro Rótulo Dourado, Monte dos Cabaços Reserva ou Mouchão do Alentejo. Vinhos como os Quinta das Bágeiras Garrafeira, Luis Pato Vinha Pan e Vinha Barrosa, Sidónio de Sousa Garrafeira da Bairrada, vinhos como os Quinta dos Roques Garrafeira, Quinta da Pellada, Quinta da Falorca Garrafeira ou Quinta da Fata Reserva do Dão.

Vinhos de equilíbrio perfeito e personalidade claramente refrescante, vinhos que alegram uma mesa.

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