Uma homenagem à imperfeição

Por estranho que a imagem se anuncie, até pela inocuidade mais que assegurada do empreendimento, há quem se empenhe numa quimera louca pela procura da perfeição, quem se iluda numa busca insensata pela perfeição, quem se consuma numa demanda irracional pela pureza absoluta, desejando conquistar o inalcançável, desejando colher o que a natureza não pode oferecer. Sim, é verdade que a procura da perfeição, uma quimera inatingível, é uma das forças motrizes da civilização, o fogo que desinquieta a alma humana. Mas também é certo que a perfeição é profundamente redutora e sensaborona.Rui Falcao

Claro que, filosoficamente, poderíamos sempre dissertar de forma mais ou menos contemplativa sobre o tema, ensaiando sobre o lugar da perfeição no mundo e no nosso aprimoramento enquanto seres humanos, sobre a consciência da perfeição encarada numa perspectiva mais próxima da esfera divina ou da simples existência terrena. Porém, existe uma diferença capital entre o almejar pela excelência e o suspirar sonhador pela perfeição. A primeira é atingível, gratificante e saudável, enquanto a segunda se apresenta inatingível, frustrante e neurótica, caracterizada por um tremendo desperdiçar de tempo e esforço.

Será a perfeição uma meta a almejar no mundo tão próprio do vinho? Quando colocada a nível individual, a perfeição pode ser esmagadora, paralisante e improdutiva. Quando colocada dentro do universo do vinho a perfeição pode ser sinónimo imediato de insipidez, tédio e monotonia. Porque o conceito de perfeição implica uma ideia de harmonia absoluta, de tranquilidade final, a antítese de tensão. E poucos descritivos se apropriam mais à magnificência e dramatismo do vinho que a tensão, o contínuo batalhar entre as muitas singularidades e particularidades do vinho, as múltiplas esquinas e arestas, o nervo e energia que segura as pontas dos grandes vinhos mundiais, transportando-os para uma dimensão quase celestial.

Os vinhos perfeitos, muito certinhos e redondinhos, limados de todos os excessos e de todos os lampejos de individualidade, são, por regra, vinhos disciplinados pelo ferro do homem, projectados segundo a batuta de gestores de produto e marketeers, empenhados em estampar um vinho desenhado a regra e esquadro segundo o que os estudos de opinião e de mercado aconselham para cada momento e cada segmento. Vinhos correctos e muito bem-feitos, mas destituídos de alma e de espírito, assépticos, sem o brilho e fulgor da autenticidade.

Vinhos para serem bebidos enquanto somos jovens, enquanto acreditamos em juízos tão impraticáveis como a perfeição. Depois, à medida que o tempo corre, o vocábulo perfeição vai perdendo espaço e justificação no nosso vocabulário. Com a maturidade usamo-la menos vezes, independentemente da causa. Enquanto adolescentes sonhamos com a vida perfeita, a carreira perfeita, a casa perfeita. Afinal, o sonho faz parte da vida! Como adolescentes, sonho e perfeição parecem poder andar lado a lado. À medida que amadurecemos, não perdendo a capacidade de sonhar, percebemos, finalmente, que a excelência pouco ou nada tem a ver com a perfeição.

Porque as imperfeições, as pequenas e delicadas imperfeições do vinho, são o sal e a pimenta que condimentam o fascínio do vinho, que acrescentam carácter, que alimentam e enfatuam a personalidade de cada vinho. Muitos dos enólogos, criadores de vinho de formação regrada e científica, de tão formatados e racionalmente condicionados para reparar os putativos defeitos do vinho, acabam por estripá-los de todas as pequenas irregularidades… que lhes acrescentam alma e condição.

Claro que não se pede que os vinhos acordem sujos e atestados de defeitos, repletos de incorrecções, manchados por diferentes vícios, evocando muitos dos equívocos do passado. Mas a perspectiva entre a adega e o consumidor, entre o criador e o comprador, por vezes é diametralmente oposta, com o mercado e a crítica a valorizarem alguns dos predicados do vinho… que os enólogos, racionalmente, apontam como defeitos.

Rui FalcaoFelizmente, algumas dessas imperfeições sobrevivem e continuam a assegurar a personalidade dos diferentes vinhos. Nada pior que um vinho bem polido, certinho, aprumado… mas sem sal. Felizmente, e para ventura de muitos, sobrevêm os casos de vinhos inconformistas e repletos de personalidade, vinhos a que os puristas conseguem, com uma facilidade desconcertante, apontar inconformidades. Caso contrário, o universo do vinho seria povoado por uma profunda sensaboria. Conseguem imaginar o mundo sem vinhos como o Mouchão, um clássico de perfil intemporal, imune a modas, capaz de suportar a passagem do tempo sem sofrer qualquer beliscão? Um tinto de acidez generosa e corpo intransigente, finamente marcado pelo suor e pelos aromas de couro, poderoso, um tinto que termina irrepreensível, naquele que será um dos melhores tintos alentejanos de sempre. Ou um Quinta do Mouro Rótulo Dourado, indeciso entre exibir um vigor desmesurado ou um equilíbrio resplandecente, hesitante entre a loucura da potência desmedida e a delicadeza afectuosa de trato, perdido num estranho jogo de contrastes e contradições, ora urbano e polido, ora despótico e persevero… mas sempre fresco e tenso, com um final de boca triunfal, envolto em taninos eficazes e superiormente proporcionados.

Ou mesmo um Sidónio de Sousa Garrafeira 2005, um tinto incrivelmente poderoso, um gigante da natureza, um pequeno monstro de dimensão absolutamente demencial. Um vinho bruto, mau, sólido, intransigente e interminável! Um hino à tradição dos grandes vinhos bairradinos, uma ode à inconformidade e aos vinhos originais, um monumento à casta Baga… e à dignidade humana! Um outro grande vinho do mundo, que necessita de abertura de horizontes para poder ser compreendido e aceite.

3 Comments
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    Flavio Henrique

    January 6, 2014 at 16:57

    Caríssimo,
    Excelente artigo! Aqueles vinhos ditos tecnicamente perfeitos, muitas vezes não nos emocionam. A propósito, estou por abrir um Sidónio de Sousa Garrafeira 2000, que se em forma, provavelmente me trará bons momentos.
    Saudações,
    Flavio
    Flavio Henrique recently posted..Clarendon Hills Piggott Range Syrah 2001: Australiano de primeira grandeza!My Profile

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    Hugo Mendes

    January 15, 2014 at 12:38

    Só me custa concordar com a definição implícita, presumivelmente dogmática, dos termos perfeição e o seu oposto. Estes dois termos, têm evoluído com a humanidade e mesmo na história do individuo, vão tendo significados diferentes ao longo da sua existência.

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    Rui Falcão

    January 15, 2014 at 18:43

    Hugo, a minha alegação, longe de querer proteger algum dogma, pretende apenas reflectir sobre a busca infrutífera da perfeição no vinho e dos atropelos que por vezes se têm de fazer em busca dessa mesma perfeição ilusória.
    Como indiquei no texto tal não significa que se procure deliberadamente a falha, que se induzam erros grosseiros, que se busque o defeito como sinal alternativo de uma pretensa valorização. O que não significa que, infelizmente, alguns não embarquem nessa deriva dos defeitos à procura da sensação de originalidade…

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