Vinhos de talha e a galinha dos ovos de ouro (in Fugas)

Ao contrário do que se poderá pensar numa análise mais apressada, é sobretudo entre os mercados de consumo mais maduro, nos países com conhecimentos mais sólidos e consistentes, que estes vinhos começaram a ganhar peso, conquistando um nicho de mercado não negligenciável e que pode oferecer mais-valias financeiras relevantes.

Entre os muitos países europeus e as múltiplas regiões vinícolas do velho continente, emergiram duas regiões que se anunciam como catalisadoras desta forma de fazer vinho — a região da confluência entre a Itália e a Eslovénia, no Friuli, e a Sicília, nas profundezas do Mediterrâneo. Apesar de estarmos a falar de duas regiões italianas, nada no passado recente de Itália poderia pressagiar tal futuro, já que as origens dos vinhos de talha, vinhos de ânfora de barro, advêm do extremo oriental europeu, da região de confluência entre a Ásia menor e o Cáucaso. Se quisermos apontar para o nome de um país em concreto teremos então de mencionar a Geórgia, pátria espiritual e material do vinho na sua forma mais primária e elementar.

Mas o que tantas vezes esquecemos, tanto internamente como na comunicação com os restantes países do mundo, é que existe um segundo ponto de tradição milenar no capítulo dos vinhos de ânfora, um nome que nos é familiar e que nos deveria encher de orgulho. Essa região situa-se em Portugal e dá pelo nome de Alentejo, região que aprendeu a fazer vinhos através desta técnica desde que foi conquistada e colonizada pelos invasores romanos há pouco mais de dois mil anos. Só nestas duas regiões situadas nos antípodas da Europa é que a tradição dos vinhos de talha se foi mantendo consistente e corrente, uma tradição que o lento passar do tempo não foi capaz de apagar.

Talhas de barro para a fermentação de mostos e posteriormente para a eventual armazenagem de vinho cuja praxis constitui, ainda hoje, uma prática corrente e que se afirma como parte integrante da identidade cultural alentejana. Talhas de barro de todos os tamanhos e feitios construídas de forma artesanal mas magistral por talheiros exímios. Barro poroso que obrigava a uma impermeabilização cuidada com pês, uma resina natural de pinheiro, segundo processos e fórmulas ancestrais conduzidos por gerações sucessivas de pesgadores, profissão a que hoje poucos se dedicam.

Talhas que continuam hoje a servir, tal como no passado, para produzir vinhos brancos e tintos segundo uma visão muito particular do vinho que é reflectida de uma forma radicalmente diferente dos actuais paradigmas da enologia. Vinhos clássicos, telúricos e austeros sem a fruta e a limpidez de aromas que a maioria dos vinhos correntes de hoje beneficia mas também sem o grau de artificialidade, cinzentismo e ausência de carácter que corrói tantos vinhos actuais. Vinhos fermentados a temperaturas mais elevadas, sujeitos a um ambiente oxidativo em lugar do ambiente redutor que hoje tanto privilegiamos, submetidos a macerações prolongadas com as películas, livres de filtrações e demais labuta a que os vinhos contemporâneos são subordinados.

Vinhos de nicho mas o seu séquito de apaixonados e seguidores que continua a crescer de forma exponencial. Vinhos que em muitos casos, sobretudo em Itália, são vendidos a preços muito elevados, tendo alguns deles sido promovidos ao estatuto de vinhos de culto internacionais. Para o Alentejo, condição que se poderá estender a outras regiões de Portugal, os vinhos de talha não são mais que a sua condição natural. A realidade é tão evidente que depois de anos de alheamento o Alentejo, bem como alguns produtores pontuais de outras regiões, começam finalmente a querer dar sinal de vida ensaiando um regresso às tradições do passado com os novos vinhos de talha.

Apesar da alegria perante tal realidade, e da presença de um leve estado de euforia, a verdade é que, mais que alegria, o que se perspectiva para o futuro próximo é apenas um estado de inquietude. Seguindo a velha máxima portuguesa que a galinha de ovos de ouro deve ser morta quase de imediato, muitos dos recentes convertidos estão prestes a querer destruir um passado glorioso com mais de dois mil anos. Porque não podemos chamar vinho de talha a qualquer coisa e em qualquer circunstância só porque o nome está na moda ou só porque o departamento de marketing percebeu que a designação era vendável.

Existem regras que deveriam ser respeitadas e deveria existir uma certificação que regulamentasse as práticas, um código de certificação que proibisse a utilização do nome fora do contexto e das práticas tradicionais. Porque não basta estagiar um vinho em ânforas de barro para lhe chamar vinho de talha. Porque não basta vender um vinho em pequenas talhas de barro para lhe chamar vinho de talha. Porque não adianta revestir uma talha de resina epoxy, roubando-lhe todos os atributos do barro, para vir depois invocar o nome vinho de talha. Porque não basta indicar o nome talha, ânfora ou argila algures no rótulo, seja de forma mais directa ou mais subtil, para que este seja ou se comporte automaticamente como um vinho de talha. Não basta colocar uma percentagem mínima do vinho em talha, muitas vezes apenas no estágio, para que o vinho possa ser sugerido como vinho de talha.

As regras deveriam ser claras, defensoras do estilo, da tradição e do respeito por uma técnica milenar que só poderá valer algo e só poderá ser uma mais-valia se for cuidada, regulada e se oferecer garantias de autenticidade aos consumidores. Enquanto as comissões vitivinícolas deveriam ser extremamente rigorosas nas regras e na certificação, os produtores deveriam ser os primeiros fiscais para os perigos da desvalorização do nome.

Iremos nós abandonar o que nos diferencia sem perceber que é essa mesma diferença e originalidade que nos singulariza num mundo cheio de lugares comuns? Quando é que novos e velhos produtores alentejanos, ou mesmo de outras regiões, se irão aperceber que a relevância e potencial dos vinhos de talha não pode ser destruída com atalhos comerciais que só desvalorizam um dos nomes mais originais de Portugal? Sobretudo quando, ao contrário do universo dos vinhos espumantes, temos mesmo um nome original a propor para este estilo de vinho, factor decisivo na comunicação dos vinhos portugueses.

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