Uma questão de preconceito

Os preconceitos geram sempre equívocos e estorvos, erros de julgamento e desacertos de análise. Os preconceitos assentam em juízos de valor precipitados, em reflexões formados na má-fé ou na simples ignorância, vivendo mais da paixão ou do bairrismo que da racionalidade ou do pensamento analítico. Os preconceitos toldam a visão e encobrem o discernimento, ensombrando o juízo e o critério.

Infelizmente os preconceitos abarcam toda a sociedade de forma transversal, são intrínsecos ao ser humano, são um facto indelével e inevitável da condição humana. Os preconceitos abundam e alargam-se a todos os Alentejocampos do saber, embora em nenhum deles se propaguem e perpetuem de forma tão exuberante como nos domínios do ócio e do prazer, nos universos que se alimentam da palavra “paixão”, nos sectores que preenchem os nossos momentos de lazer, nos espaços que vivem torneados pela crítica e que ocupam lugares onde a ciência e a exactidão são encarados com alguma relatividade.

É na literatura, na música, na cinefilia, nos desportos, na gastronomia e no universo do vinho, nos terreiros onde a crítica joga um papel decisivo na formação de opinião, que o preconceito mais se desenvolveu e onde ganha maior jurisdição. O vinho é campo fértil para os preconceitos, para os juízos feitos e as tomadas de opinião definitivas, terreno fértil para a facilidade com que se instituem dogmas. São muitas as convicções e as frases feitas que pululam no meio, certezas absolutas que de tão repetidas acabam por se converter em verdades únicas que poucos arriscam questionar.

Entre as muitas “verdades” corrosivas que circulam no meio conta-se o preconceito cáustico lançado sobre os vinhos alentejanos, identificando-os como sendo fáceis, quentes, simples, de taninos suaves e sedosos, vinhos de vida curta que deverão ser bebidos jovens e no mais curto espaço de tempo possível, beneficiando deles enquanto adolescentes e exuberantes. Uma descrição falaciosa que poderá ser aplicada a qualquer região portuguesa, desde que justaposta aos vinhos do segmento mais acessível.

Uma parte substancial da crítica nacional e da enofilia que se julga mais exigente olha para os vinhos alentejanos com um misto de complacência e sobranceria, encarando-os com a superioridade moral que costuma embalar o preconceito, assumindo-os como simplesmente legítimos e esforçados mas sem as qualidades naturais e os predicados que outras regiões encerram. Olham para os vinhos alentejanos de forma enviesada aceitando-os entre a gama baixa e média mas afastando-os dos lugares cimeiros, aceitando-os como líderes de venda para as massas mas incapazes de possuir armas para lutar contra a elite dos vinhos nacionais. Olham para os vinhos alentejanos presos a estereótipos do passado ou a circunstâncias que raramente têm fundamento, colando-lhes uma imagem de simplicidade e veludo que raramente é ratificada pela realidade.

Uma visão que carece inteiramente de fundamento, assentando arraiais no preconceito e desconhecimento. Um visão que a prática se encarrega de facilmente desmontar. Se há algo que hoje caracteriza a maioria dos vinhos alentejanos mais ambiciosos é a sua estrutura, a austeridade e dureza de taninos, a firmeza da frescura e acidez, a solidez e volume da boca, termos que poucos associam ao Alentejo e que concedem facilmente a outras denominações nacionais. Se olharmos para a maioria dos vinhos alentejanos de topo actuais iremos encontrar vinhos sólidos e fechados, por vezes ríspidos e severos, vinhos vigorosos e com um enorme potencial de envelhecimento em garrafa.

Não será uma novidade da região em termos absolutos, como se comprova pelos casos dos vinhos velhos do Mouchão ou da Quinta do Carmo, mas é uma tendência que tem vindo a ser reforçada ao longo desta últimaRui Falcao Alentejo década e meia. Quem provar vinhos como o T de Terrugem das Caves Aliança, Conde d’Ervideira Private Selection, Tinto da Ânfora Grande Escolha da Bacalhôa, Solar do Lobo Grande Escolha, Herdade das Servas Vinhas Velhas, Ícone da Sogrape, Cortes de Cima Reserva, Marias da Malhadinha, Monte dos Cabaços Reserva, Grande Rocim, Dona Maria Reserva, Zambujeiro, Quinta do Mouro Rótulo Dourado, Mouchão Tonel 3-4 entre tantos outros vinhos alentejanos irá rapidamente descobrir o que significam descritivos como taninos vivos e duros, volume, corpo cheio, frescura, estrutura e capacidade de envelhecimento.

Mesmo os vinhos de recorte mais suave e delicado entre o conjunto de vinhos mais ambiciosos do Alentejo, rótulos como o Marquês de Borba Reserva, Esporão Private Selection, Herdade dos Grous Reserva, J da José Maria da Fonseca, Terrenus Reserva, Pêra Manca, Adega de Borba Reserva, Inevitável, Herdade de São Miguel Reserva, Herdade do Perdigão Reserva, Monte da Penha Gerações, Paulo Laureano Dolium, Tinto da Talha Grande Escolha, Outeiro de Terra d’Alter, Tapada de Coelheiros entre muitos outros, não escondem um lado sóbrio e robusto, revelador de viço e firmeza, solidez e frescura, atributos que o preconceito quer fazer descolar do Alentejo com frequência.

Um dos exemplos mais recentes de vinhos alentejanos vigorosos e poderosos, vinhos severos e carregados de personalidade é o colossal Torre do Esporão, um tinto austero e notável, sociável mas intransigente, um pequeno monstro superiormente domesticado que se anuncia como um dos argumentos mais persuasivos contra os preconceitos ingénuos.

2 Comments
  • avatar

    Gerson Pereira Lopes

    January 14, 2013 at 11:11

    Fantástico, como sempre, são os seus textos.Acredito que todo preconceito impede você estar disponível, com o coração e mente abertos para receber o que pode vir.É através do coração que as coisas se revelam e são descobertas. O preconceito dificulta e muito esta visão.

  • avatar

    Elias Macovela

    January 20, 2013 at 00:34

    Caro Rui,

    Não terá sido pela necessidade de vender que própria região involuntariamente criou e contribuiu para a perpetuação desse preconceito junto dos consumidores?

    Quanto a mim, tenho-me impressionado com os vinhos Alentejanos antigos, como os da Adega Cooperativa de Borba Rótulo de Cortiça 1982, 1977 e 1964. Todos com grande frescura e elegância.

    Cumprimentos,
    Elias Macovela

Post a Comment

CommentLuv badge