O mito da enologia não interventiva

As modas e tendências, poderosas como são, influenciam o mundo do vinho de forma especialmente virulenta sujeitando os seus intervenientes a utilizar lugares comuns de absorção simples. Uma das mais recentes, e que consagra um dos chavões mais apreciados pelo espírito politicamente correcto, afirma com convicção que os melhores vinhos são fruto de uma aproximação enológica não interventiva, onde o enólogo se deverá confinar ao papel de mero espectador do trabalho de Deus e da natureza. Segundo esta visão mais ou menos idílica o vinho é um produto natural e quase sagrado, resultado directo da bondade da natureza.Rui Falcao - vinho natural

São poucos os enólogos e produtores que não alinham, pelo menos publicamente, por este diapasão proclamando as virtudes da enologia minimalista, atestando a quase ausência de intervenção, prescrevendo uma aproximação leve e sem ingerências no destino superiormente traçado pela natureza. Ou seja, são raros os enólogos que hoje não anunciam o seu vinho como o resultado de um processo natural e espontâneo da videira em lugar de uma obra propositada e criativa do homem. Um paradoxo absoluto!

Porque a ser séria tal premissa implicaria que os melhores vinhos nasceriam do resultado directo da graça de Deus restando ao homem o simples papel de espectador dos caprichos da natureza, de mero tutor do fruto da videira. Como narrativa romântica e como sound byte empolgante a imagem é encantadora, mas, infelizmente, o conceito tem pouco a ver com a realidade. Porque, deixando de lado os maneirismos do marketing e a ditadura do pensamento politicamente correcto, a ideia romântica da enologia de intervenção minimalista não significa nada.

A afirmação poderá até parecer chocante mas o vinho é tudo menos um efeito directo da natureza. Pelo contrário, o vinho é uma criação intelectual do homem, porventura uma das suas criações mais completas e sublimes, dependente de dezenas de pequenas e grandes decisões, de escolhas, de intervenções mais ou menos incisivas. O vinho é uma criação artificial, criado e acarinhado pelo homem, com a cumplicidade da natureza. Porque, convém não o esquecer, sem o acompanhamento do homem o resultado natural e instintivo do esmagamento e posterior fermentação das uvas não seria o vinho… mas sim o vinagre. Sem a intervenção directa do homem, sem o seu amparo e protecção, o vinho não existiria.

Tal como não existiriam as videiras, pelo menos da forma como as entendemos hoje. Quem se entretém a discutir sobre uma aproximação minimalista ao vinho tende a esquecer-se da intervenção contínua que praticamos na vinha, abstraindo-se de comentar processos como a condução da vinha, podas, desfolhas, mondas em verde, irrigação, compassos e distâncias entre linhas e tantas outras condicionantes artificiais a uma planta bravia que o homem domesticou e conduz a seu belo prazer, intervindo directamente na sua lavra.

O culto da não intervenção e da enologia minimalista é uma falácia que assume muitos dos erros de princípio evidenciados no manifesto político adoptado pelo documentário Mondovino, visível nas distinções facilitistas e primitivas entre bons e maus, entre pobres e ricos, entre produtores puros e artesanais versus os produtores industriais e as grandes multinacionais do vinho. Não é difícil perceber de que lado da barricada de comunicação a maioria dos produtores quer estar.

Fazer um vinho é intervir sobre a natureza. Da mesma forma que um escritor traça uma narrativa graças à escolha das palavras, um enólogo constrói os seus vinhos graças à escolha das muitas decisões que teve de tomar ao longo do processo. Não foi certamente por acaso que os franceses escolheram as palavras elevage e affinage para definir de forma explícita as principais funções de enologia, aproveitando dois conceitos que explicam de forma eloquente as tarefas de Rui Falcao - vinho naturalprodutores, enólogos e adegueiros.

Educar e apurar os vinhos são tarefas que a natureza, por mais benévola que seja, não quer nem consegue providenciar. Ao longo da elaboração de um vinho há infinitas decisões a tomar, mesmo numa enologia assumida como minimalista, a começar pela marcação da data de vindima, a primeira e mais decisiva das intervenções impostas pelo enólogo. Depois seguem-se um rol de decisões e intervenções imprescindíveis para o desempenho do vinho. Nem mesmo os apologistas do não intervencionismo deixarão de fermentar a temperaturas controladas, de forma a conseguir governar de forma mais apurada a extracção de cor e taninos nos vinhos tintos, ou a expressão da fruta ou de outros predicados nos vinhos brancos.

São apenas duas das muitas intervenções necessárias nas adegas. Um enólogo é um decisor e não um espectador do processo. Intervenções como permitir ou impedir macerações com as peles das uvas, desengaçar ou manter o engaço da uva, autorizar ou impedir a fermentação maloláctica, determinar o tempo de estágio, são algumas das muitas deliberações que um enólogo tem de efectuar ao longo da vida de um vinho. E o que dizer quando os não intervencionistas envelhecem o vinho em madeira, velha ou nova, francesa ou americana… mas sempre estranha ao vinho?

Deverá o vinho transformar-se então numa manipulação artificial e industrial da uva? Claro que não e quanto menor for a manipulação da fruta, melhor. Mas tal como poucos acreditarão no conceito de não intervenção na educação de um filho, deixando-o à solta e entregue a si próprio, sem regras e sem valores, poucos acreditarão que o vinho se faça sozinho, sem o condicionamento do homem. O vinho é um processo de criação intrinsecamente interventivo. A aproximação enológica não interventiva não passará, no seu melhor, de uma aspiração legítima e poética… e, no seu pior, de uma convincente e eficaz ferramenta de comunicação.

8 Comments
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    Flavio Henrique

    June 26, 2013 at 14:56

    Caro Rui,
    Excelente artigo! Concordo plenamente com você. Vinho bom se faz com boa uva e boas mãos. Sem a intervenção de um bom enólogo, nada feito. Alguns podem até ser reticentes quanto à utilização de leveduras selecionadas, aditivos etc. Mas não há como falar em não intervenção. Pode-se ter mais ou menos, não nunca nenhuma intervenção. O problema é que muita gente bebe vinhos cheios de defeitos em nome da inexistente “não intervenção”. Eu acho que essa separação que nos querem impingir, entre o bom e o mau, entre o artesanal e o industrial etc, não está com nada! Eu, particularmente, gosto de bons vinhos. E confesso que prefiro aqueles feitos com menor intervenção, com uvas de agricultura orgânica, de forma mais artesanal etc. Mas eles têm que ser bons! Beber vinho defeituoso só porque teve pouca intervenção, tô fora!
    Abraços,
    Flavio

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    Luis Pato

    June 26, 2013 at 15:57

    Salvo raríssimas exceções há sempre uma pequena intervenção, nem que seja , dos conhecimentos do winemaker (porque pode não ser enólogo). É assim na junção de açúcar nos vinhos dos países europeus com um clima mais frio(o Champanhe , por exemplo,é o açúcar mais caro do Mundo) ou de ácido em geral nos países do Sul. A adição de sulfuroso é mais abrangente a todas as regiões sejam do Norte ou do Sul.Como , hoje em dia , embora se bebam vinhos mais jovens ainda não se bebem apenas do ano o que “obriga” a adição desse produto químico para a sua estabilização .Para mim o que me coloca os cabelos em pé é saber que a legislação europeia PERMITE até 400mg/l de sulfuroso em vinhos doces ….biológicos-por força dos alemães é claro! A mim estes vinhos me dão dor de cabeça.

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    Luis Patrão

    June 26, 2013 at 18:12

    Brilhante!

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    Rodrigo

    June 26, 2013 at 19:36

    Rui,

    talvez leigos, ao lerem sobre não-intervenção no vinho, creiam na linha que você descreveu como (” mero espectador do trabalho de Deus e da natureza”).
    Eu, da minha parte, defendo o não-intervencionismo exatamente em evitar-se a “manipulação artificial e industrial da uva”. Ou seja, do ponto de vista “politicamente correto”, prefiro os vinhos que envelheceram em barrica aos que foram micro-oxigenados com equipamentos eletrônicos; que contém acidez da uva, ao invés de adicionada; que não tiveram adição de açúcar; que não foram chaptalizados; ou que não passaram por osmose reversa para encorpar artificialmente os vinhos. Também prefiro os vinhos que não utilizaram leveduras transgênicas (o que para mim é mais importante do que a distinção entre leveduras indígenas ou selecionadas). Enfim, quem conhece alguma coisa sobre o processo de produção de vinho, quando se refere ao intervencionismo, tem em mente evitar este tipo de manipulação.

    Atenciosamente,
    Rodrigo

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    Flavio Henrique

    June 27, 2013 at 13:31

    Caros,
    A meu ver, a intervenção sempre existe (maior ou menor). No entanto, compreendo perfeitamente o que o colega Rodrigo quer dizer, e me compactuo com ele. Também prefiro a intervenção que espelhe a arte e habilidade do enólogo, em detrimento das outras por ele citadas. [Ou do vinhateiro, como apropriadamente citou o Sr. Luis Pato]. Quanto às leveduras, talvez fosse mais adequado que as pessoas se referissem a elas como sendo “leveduras que acompanham a própria fruta” e “adicionadas”, em vez de utilizar indígenas e selecionadas. Afinal, a selecionada já foi “indígena” um dia (e continua sendo levedura). Em relação às transgênicas, ou geneticamente modificadas, as coisas mudam, e confesso que não sei até que ponto elas são realmente utilizadas na produção de vinhos. Há normas muito rígidas para utilização industrial desses micro-organismos na maior parte do mundo. No entanto, quero só lembrar que a insulina que trata a diabetes, o hormônio de crescimento que trata o nanismo e tantos outros polipeptídeos de aplicação médica, são produzidos em bactérias, leveduras e outros tipos celulares, geneticamente modificados. É só para polemizar um pouco, pois OGMs (organismos geneticamente modificados) sempre são polêmicos…rs. O artigo é ótimo e os comentários muito apropriados.

    Abraços,

    Flavio

    Ps. Entendam esse comentário como sendo de um geneticista molecular que sabe pouquíssimo da produção de vinho, mas que gosta muito dele… E dos micro-organismos…rs.

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    Hugo Mendes

    June 27, 2013 at 13:45

    Rui,
    Fantástico!
    Penso que se trata de algo relacionado com as conjunturas sociais que se vivem. A malta anda farta do excesso de químicos e manipulações, por isso, carregam-se nos argumentos anti-aditivos e anti-manipilação.
    Pouca gente explica que o pior dos aditivos utilizados (dos legais, entenda-se) é mesmo o milagroso Sulfuroso que usamos desde que os holandeses apareceram com isso e todos, mais ou menos bio, usamos.
    Se escolhemos usar leveduras ou não usar, usar enzimas ou não, usar aparas ou madeira,… penso que devem ser decisões baseadas no resultado. No vinho, não no rótulo.
    A decisão deve ser tomada com base nas variáveis que temos disponíveis para fazer os vinhos e não na forma como isso nos leva a surfar a onda do momento!
    Hugo Mendes recently posted..Emoções de Vindima – Vontade de matar um!My Profile

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    André Magalhães

    June 27, 2013 at 15:53

    Caro Rui Falcão,

    antes de mais queria dizer que sou um leitor regular dos seus artigos os quais considero em geral interessantes e equilibrados.
    No entanto neste caso creio que faltou bom senso na análise a este tema.
    A impressão com que fiquei ao ler as suas palavras foi a de uma ridiculirização exagerada e desnecessária do movimento de minimazação da intervenção enológica, e digo isto não tendo qualquer tipo de ligação nem a esse movimento nem a qualquer sector da industria vinícula, sou um mero consumidor e apreciador de vinhos.
    Parece-me que faz sentido haver espaço para diferentes estilos, dimensões e filosofias de produção, e que não é intelectualmente honesto reduzir o movimento em questão ao “resultado directo da graça de Deus”.

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    Adolfo Lona

    January 7, 2014 at 14:28

    Difícil imaginar que haja gente que acredita que o vinho é resultado da natureza sem intervenção do homem. É justamente o homem (geralmente enólogo) quem decide que uva utilizar, como elabora-la, como cuidar do vinho durante sua conservação, envelhecimento e por fim que vinho colocar na garrafa. Concordo plenamente com Rodrigo quando diz que não intervencionismo é NÃO MANIPULAÇÃO ARTIFICIAL E INDUSTRIAL DA UVA E DO VINHO. O enólogo que transfere a responsabilidade de seu resultado ao CRIADOR vai se dar mal. A enologia exige atenção, esforço, sensibilidade e algo de suor mas sem trampas.

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