Megalomania e crise

A crise que nos assola não chegou do vazio. Há muito que os sinais económicos anteviam a aproximação de tempos difíceis, tempos de incerteza e apreensão. Com maior ou menor dramatismo pessoal, a verdade é que a crise assomou de vez, despontando para uma nova realidade cujas consequências ainda não podemos prever na sua plenitude.

No entanto, e apesar da crise financeira dramática a que poucos conseguem escapar, quando contemplamos o preço de muitos dos vinhos expostos nas prateleiras de garrafeiras e supermercados os exemplos de vinhos oferecidos a preços insensatos abundam. Num simples passear de olhos percebe-se que a barreira mágica dos 40 euros passou a ser encarada como um referencial mínimo “qualitativo” para dezenas de produtores. A escolha de palavras, referencial mínimo “qualitativo”, não é fortuita, reflectindo de forma rude mas objectiva a lógica viciada do mercado. Infelizmente, a propensão para estabelecer uma associação directa entre preço exorbitante e qualidade elevada é uma tendência humana que nós, europeus do sul, gostamos de valorar. Como se um vinho, só por ser caro, ganhasse de imediato, e por inerência, um estatuto de qualidade e originalidade.

O que, evidentemente, não traduz que alguns vinhos tenham de ser caros… ou, numa afirmação politicamente incorrecta, que alguns mereçam ser caros. Por vezes, e em casos pontuais, os preços elevados são justificáveis e inevitáveis. Estão nesta condição os vinhos de produção difícil e muito limitada, vinhos de uma vinha verdadeiramente excepcional e singular, vinhos de qualidade inexcedível e universalmente reconhecível, vinhos de qualidade marcante e constância histórica palpável, vinhos com um elevado potencial de guarda, previsto ou documentado, vinhos que provaram o seu valor e consistência ao longo de muitos anos e muitas colheitas.

O que é certamente incompreensível é que vinhos sem história, sem passado, sem um registo mínimo de consistência e qualidade, sejam de imediato posicionados perto ou acima da fasquia dos 40 euros. O que é certamente incompreensível é que vinhos de vinhas jovens e imberbes possam ser propostos a preços proibitivos e indecorosos. O que é certamente incompreensível é que vinhos de tiragem limitada por opção própria, de produções diminutas por simples definição estratégia de mercado, sejam propostos a preços elevados! O que é certamente incompreensível é que, num esforço para justificar preços tão elevados, se cometam tantos excessos e atropelos de enologia, tanta extracção, tanto peso, tanto volume, tanto álcool, tanto… de tanto! O que é certamente incompreensível é que vinhos de fogo-fátuo, vinhos sem capacidade de guarda, vinhos efémeros e postiços, possam ser vendidos a preços tão desregrados e artificiais.

Infelizmente, os vinhos troféu, megalómanos no preço e na ambição, ainda ocupam uma fatia relativamente dilatada da oferta nacional, numa atracção simultaneamente suicida e autista do mercado. Fazem-se por expectativas de mercado delineadas sob o mais puro amadorismo, por estratégias de mercado definidas em distantes gabinetes de marketing e, sobretudo, por vaidade e satisfação de um ego, por arrastamento e réplica directa ao que o vizinho propõe… mesmo quando as realidades entre projectos e propriedades confinantes são em tudo divergentes.

Fazem-se, porque num mundo tão aguerrido e competitivo, muitos produtores acreditam genuinamente que só serão levados a sério, pelo público e pela crítica, se exibirem no catálogo um vinho no limiar ou acima dos 40 euros, preferencialmente engarrafado numa garrafa imponente e ultra pesada. Pura ilusão! Esta é a seguramente a melhor estratégia para destruir uma marca, maltratando os consumidores e entrando em descrédito perante a crítica especializada. E o mercado raramente perdoa deslizes destes.

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8 Comments
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    Hugo Mendes

    January 31, 2012 at 13:38

    Caro Rui,
    Belas palavras, sem dúvida. Como sempre, aliás.
    Tenho apenas três breves comentários.
    1º Não há futuro para uns pais vitivinícola se a maioria dos produtores continuarem com essa postura. Como estou certo que grande parte desses produtores está, erradamente a aumentar os preços como solução de recurso, é apenas uma questão de tempo e paciência.
    2º Tem mesmo a certeza de que os produtores não estão a baixar os preços? Não haverá ninguém no meio a valer-se desses preços exorbitantes e a acabar directamente com marcas que não lhe pertencem. É certo que aqui, também cabe aos produtores a defesa das suas marcas, mesmo que se tenha, por vezes de dizer: naquele supermercado não vendo mais nada.
    3º A crítica teria aqui um papel muito importante se optasse, por fazer o seu papel na plenitude. Como no nosso país a critica só tem o ónus de falar do que gosta, ficam os consumidores obrigados a adivinhar o que não agradou ou se achou demasiado sobrevalorizado. A % de críticos que diz uma coisa e avalia outra é muito grande, como o Rui saberá melhor que eu. Fica difícil assim!

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    Rui Falcão

    January 31, 2012 at 15:34

    Hugo, não estou de modo nenhum mandatado para falar em nome da crítica, por isso não me posso alongar sobre o que outros escrevem ou não escrevem, pensam ou não pensam. Posso no entanto, e devo, falar em nome individual, e é precisamente nessa perspectiva pessoal de “obrigação moral” que a crítica tem de denunciar o que se pensa estar errado, que escrevo os meus textos de opinião, aqui e nos outros meios onde colaboro. E que eu saiba, não me tenho coibido de relatar a minha opinião de forma bem clara, demasiado clara para alguns, sejam essas opiniões positivas ou negativas. Mesmo no meu guia de vinhos, não me reprimo de classificar vinhos com notas que entremeiam entre 10,5 e 19,5, sem criar falsas expectativas de qualidade, numa apreciação que pretende estimular uma cultura de rigor e exigência. Mas cuidado, sou certamente a pior pessoa para falar de mim…
    Seguramente alguns produtores terão descido os seus preços de tabela, ao mesmo tempo que outros os terão subido. Não me assusta nem me incomoda que alguns vinhos sejam caros. Percebo perfeitamente que alguns o mereçam e que o justifiquem. Mas tenho mais dificuldade em perceber que se fixem preços irreais baseados apenas na tentativa de definir o preço como sugestão de qualidade superior. Tal como tenho dificuldade em perceber que um produtor sem historial, com vinhas de 4 a 5 anos, consiga logo editar um vinho clássico, Reserva e Extra, este último produzido apenas nos anos considerados excepcionais. Estranhamente, alguns desses produtores, com vinhas de 4 a 5 anos, já tiveram ocasião de lançar a versão Extra por duas ocasiões, para além do Reserva e Clássico…
     

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    Hugo Mendes

    February 1, 2012 at 22:14

    Rui,
    Nem era essa a intenção. Como deve calcular acompanho minimamente o seu trabalho. O meu comentário era uma opinião resultante da observação segundo o meu ponto de vista. E global.
    Sobre as colheitas, os especiais os clássicos e super clássicos, é mais uma vez a questão do mau trabalho e da destruição das marcas em troco de um lucro imediato e efémero. Chamo-te estratégias terroristas ou suicidas.

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    Elias Macovela

    February 2, 2012 at 01:39

    Caro Rui,

    Tive a oportunidade de assistir e provar o lançamento de uma marca e dos seus vinhos, provenientes de vinhas novas com 5, 6 anos de idade. os vinhos são interessantes, o design do rótulo e das garrafas é criativo mas, os preços são altíssimos, diria até, em alguns casos inaceitáveis e a comunicação é péssima.
    Resultado: não conseguem vender, não conseguem penetrar no mercado das garrafeiras e da restauração. Recentemente baixaram os preços de algumas marcas mas mesmo assim, têm muita dificuldade em vender. E com esta crise, o mais provável é que a marca desapareça.

    Cumprimentos,
    Elias Macovela
    Elias Macovela recently posted..Jantar com vinhos da Quinta das BágeirasMy Profile

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    Rui Falcão

    February 2, 2012 at 12:37

    Hugo, sem dúvida, são estratégias tendencialmente suicidas. Provavelmente na maioria dos casos nem sequer serão implementadas por má-fé, mas simplesmente por desconhecimento total do mercado e do modo muito particular de funcionamento do vinho.
    Por falta de preparação de quem entra num mercado “por paixão” e desconhece por inteiro a realidade.
     

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    Rui Falcão

    February 2, 2012 at 12:40

    Caro Elias, parece ser um exemplo claro de impreparação. Mexidas de preços, com reduções drásticas a meio da campanha, raramente indicam sinais de sucesso.
     

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    Hugo Mendes

    February 2, 2012 at 13:48

    Já agora Rui,
    O que é importante é que todos percebamos que um coisa não implica a outra. Estar no mercado por paixão é, na minha avaliação pessoal, A VIRTUDE, mas não justifica a ignorância nem a falte de competência.

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    Rui Falcão

    February 3, 2012 at 09:19

    Evidentemente. A paixão é óptima e mais que desejável, e nem por princípio nem deveríamos ter de perder tempo a mencioná-la em cada intervenção. A paixão deverá estar presente na maioria das actividades que abraçamos, sejam elas intelectuais ou práticas, pessoais ou profissionais, e ser uma convicção, mais que um chavão gasto que tem de ser mencionado a todo o instante.
    A paixão é obrigatória (como em todas os cometimentos da vida) mas não é suficiente para sustentar um negócio. Os dois únicos mundos que se alimentam da paixão por si só, que muitas vezes não é mais que um subterfúgio para a palavra ego, são o vinho e a restauração, onde é raro encontrar uma postura séria na procura de conhecimento e onde palavras como trabalho, investigação ou suor costumam ficar esquecidas em prol da poesia da paixão platónica.
    Paixão, sim, é indispensável e, felizmente, costuma estar presente no vinho… mas não é, de todo, suficiente. Desengane-se quem pensa que a paixão é tudo e que o trabalho e o conhecimento são meros acessórios.
     

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