Rui Falcao

Terrorismo vínico

A vivência urbana é habitualmente classificada como stressante e cáustica, uma vida repleta de perigos e ameaças que obriga a uma existência angustiada e pouco saudável. Acreditamos que a vida no campo permite uma existência mais calma e saudável, mais relaxada e harmoniosa, longe dos riscos a que as grandes cidades obrigam. Se nas cidades o pequeno e o grande crime fervilham nos meios rurais abunda Rui Falcaoa paz e a concórdia que une os seus habitantes. Se nas grandes cidades a maioria se atropela no campo leva-se uma vida mais tranquila e estável.

Talvez por isso o mundo do vinho seja habitualmente apresentado como um espaço pacífico e harmonioso onde a vida é vivida de uma forma tranquila e sem os perigos e riscos que a maioria das cidades encerra. Uma percepção que, infelizmente, começa a ser contrariada por uma sequência de actos de vandalismo e terrorismo que atingem alguns produtores europeus de pequena e média dimensão. A tranquilidade da vida campestre e da produção de vinhos começa a ser posta em causa perante os actos de sabotagem perpetrados por um pequeno grupo de delinquentes.

O último a sofrer as consequências dessa delinquência foi o respeitado e reconhecido Jacques Selosse, pequeno produtor de culto da região de Champagne que em poucos anos conseguiu elevar-se ao patamar mais alto entre os apreciadores de Champanhe. Apesar de os seus champanhes não serem verdadeiramente consensuais para uma imensa maioria de apaixonados os vinhos de Jacques Selosse personificam a autenticidade do terroir, a verdade sem maquilhagens, a identidade de um estilo mais oxidado que conseguiu fazer escola.

Inserido em Champagne, numa região onde a maioria dos produtores é medida aos milhões de garrafas, Jacques Selosse é um produtor muito pequeno que faz parte desse grupo raro de pequenos produtores que produz vinhos exclusivamente de vinhas próprias. Talvez isso ajude a explicar, pela qualidade ímpar e pela produção ínfima, que os seus vinhos sejam avidamente disputados por enófilos de todo o mundo… e vendidos a preços que, mesmo para a realidade da região, podem ser considerados pesados.

Uma realidade que ajuda a compreender que Jacques Selosse tenha sido vítima de um assalto invulgar, um ataque directo à sua adega de onde foram roubados vinhos engarrafados num valor superior a 300 mil euros. Uma operação arriscada e logisticamente complicada que obrigou ao transporte das muitas caixas de garrafas em mais de um camião TIR, roubando garrafas da gama base Initial até ao Substance Blanc de Blancs, um champanhe caro que sai da adega a preços pouco superiores a 100€ para vir a ser vendido ao consumidor por preços próximos dos 270€.

Mais sinistro que o já de si intimidante roubo das garrafas foi saber que junto com as garrafas foram igualmente roubados cerca de16 mil rótulos e 12 mil gargantilhas que muito provavelmente irão ser usadas em garrafas contrafeitas que poderão ajudar a desvirtuar a marca.

Poderia até ser um caso isolado mas a verdade é que o terrorismo vinícola começa a ganhar fôlego. Que o diga Gianfranco Soldera, o criador do grande vinho homónimo, o enorme Brunello di Montacilno que ficou celebrizado precisamente pelo apelido do proprietário, Soldera. Um dia ao entrar na adega Gianfranco Soldera encontrou um mar de vinho derramado pelo chão. Alguém entrou na adega Soldera durante a noite para se entreter a abrir as torneiras dos depósitos onde envelheciam os grandes vinhos da casa. De uma só vez foram despejados um pouco mais de 62 mil litros de vinho, o equivalente a aproximadamente 84 mil garrafas, destruindo por inteiro as colheitas dos anos 2007, 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012 que se encontravam em estágio nas cubas.

Um prejuízo avaliado em dez milhões de euros que implicou a destruição quase completa de seis colheitas seguidas de um vinho de culto. Soube-se mais tarde que o culpado, e posteriormente condenado, era um ex-empregado da casa que actuou por represália quando o proprietário não lhe autorizou a dormir na adega. Em Espanha, na região de Priorato, seguiu-se uma vingança e sabotagem quase idêntica, Rui Falcaoembora aqui os requintais de sadismo e malvadez tenham atingido proporções ainda mais cruéis e doentias.

O prejudicado foi o pequeníssimo produtor Terroir al Limit, uma pequena operação do conhecido enólogo e produtor sul-africano Eben Sadie no Priorato em colaboração com Dominik Huber e Jaume Sabaté. Vinhos vertiginosos e extremados que aparentemente incomodaram o suficiente para quem um dia a região alguém tenha assaltado e vandalizado a adega, divertindo-se a abrir as torneiras de todas as cubas espalhando o vinho pelo chão da adega. Não satisfeitos com o acto os assaltantes introduziram lixívia em várias barricas cheias de vinho arruinando assim a quase totalidade dos vinhos da adega.

Infelizmente, esta é apenas uma das muitas histórias de vandalismo e terrorismo vínico que tomaram de assalto as adegas de alguns países europeus. Esperemos que o desvario não chegue a atingir as nossas fronteiras.

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