Rui Falcao - Trappist

Cerveja de abadia… ou vinho de abadia?

As cervejas conhecidas como Trappist, cervejas artesanais de origem conventual, são reconhecidas nacional e internacionalmente como cervejas sofisticadas, cervejas com história e origem determinada. A produção está restrita às abadias da ordem Cisterciense continuando a ser supervisionadas por frades da congregação, estando hoje reduzidas à produção em seis abadias belgas (Chimay, Orval, Rochefort, Rui Falcao - TrappistWestmalle, Westvleteren e Achel) e uma abadia holandesa (Koningshoeven). As cervejas Trappist demonstram de forma eloquente a ligação histórica entre as diferentes ordens religiosas do centro da Europa e a produção de cerveja e outras bebidas alcoólicas.

Na verdade estas ligações são mais evidentes no vinho, sobretudo nos países do sul da Europa, evidenciadas pela celebração eucarística do corpo e sangue de Cristo através do vinho. Ligações simultaneamente religiosas e culturais que influenciaram a forma como as diferentes civilizações ocidentais se ligam ao vinho.

O que nem todos saberão é que existe uma vida para além das cervejas Trappist e que algumas ordens religiosas europeias perpetuam a tradição de produzir e comercializar vinhos de abadia. Existem vinhos de abadia para todos os gostos e feitios produzidos um pouco por toda a velha Europa. Por vezes são elaborados em mosteiros com um passado esplendoroso, por vezes em mosteiros de origem mais recente ou mais modesta, por vezes em abadias tradicionalistas, por vezes em abadias mais liberais. Por vezes em ordens fechadas sobre si próprias, algumas delas de clausura, por vezes em ordens abertas à comunidade. Por vezes em conventos de ordens religiosas masculinas, por vezes em conventos de ordens religiosas femininas.

A abadia Beneditina de Santa Hildegarda, sita em Rüdesheim, na famosa região vinícola de Rheingau, será um dos conventos mais famosos. Descendente de uma família nobre alemã, Hildegarda nasceu no castelo de Böckekheim em 1098. Foi entregue muito cedo aos cuidados de um convento de freiras beneditinas, como era costume na época, tendo assumido a chefia do convento em 1136. Dotada de personalidade forte Hildegarda terá sentido o chamamento do Espírito Santo relatando algumas das suas revelações… dedicando uma atenção especial ao vinho como elemento purificador do sangue.

A sua obra inspirou uma nova ordem religiosa, as Irmãs de Santa Hildegarda, as mesmas que governam a Abadia de Santa Hildegarda num dos locais mais turísticos da Alemanha vinícola. Os sete hectares de vinhas, situadas no monopólio de Rüdesheimer Klosterlay, no coração de Rheingau, compreendem seis hectares de Riesling e um hectare de Spätburgunder (Pinot Noir) que permitem uma produção de 18.000 garrafas ano. Tudo é decidido e preparado na abadia pelas oitenta irmãs beneditinas, da viticultura à enologia, do marketing à comercialização, dos trabalhos na vinha ao enchimento e rotulagem das garrafas.

Mas este relato que pode ser alargado a outros conventos situados em diferentes países europeus. Entre eles conta-se a abadia italiana de Novacella, no Alto Adige, na região a que os austríacos já se habituaram a chamar Tirol do Sul. Construída por membros da ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho em 1142 a Abadia de Novacella orgulha-se de possuir as vinhas e adega situadas mais a norte em Itália, financiando a maioria do seu trabalho pastoral com a venda à porta da adega dos seus vinhos elaborados com as castas Gewürztraminer, Silvaner e Müller Thurgau. Da mesma ordem religiosa mas desta vez já na vizinha Áustria, situa-se o Mosteiro de Klosterneuburg, mosteiro fundado em 1113 que se dedica há mais de 900 anos ao estudo e ensino tanto da viticultura como da produção de vinho,Rui Falcao - Trappist reclamando para si o título de produtor de vinho mais antigo de toda a Áustria. Curiosamente o mosteiro é um dos maiores proprietários de vinha na Áustria possuindo 110 hectares de vinha, um autêntico latifúndio num país que se celebrizou pelo tamanho muito pequeno das parcelas de vinha.

Também em França, na abadia de Sainte Madeleine du Barroux, na região da Provence, a congregação de monges beneditinos produz um vinho tinto e um vinho rosé com as castas Syrah, Grenache e Cinsault. Poderá até parecer estranho mas os dois vinhos são comercializados unicamente através do site Internet da abadia ou directamente à porta da adega. Até mesmo na moderna Califórnia, em Vina, vamos encontrar uma abadia Cisterciense fundada por monges que se auto intitulam trapistas propondo um grupo alargado de vinhos que são comercializados genericamente e ironicamente sob o nome Poor Souls

Tags:
3 Comments
  • avatar

    Estado Liquido

    January 29, 2014 at 11:27

    Muito bom este artigo.
    Estado Liquido recently posted..Wine Spectator dá 98 pontos ao duriense Pintas 2011My Profile

  • avatar

    Marco Aurélio Lopes

    January 30, 2014 at 19:57

    Boa tarde Rui Falcão!

    Gostei da matéria, achei muito interessante. Nos últimos dias venho estudando as “cervejas especiais”, e se puder contribuir (com toda humildade e respeito), hoje no mundo existem 11 cervejarias da ordem dos trapistas. Além das já mencionadas (Belgas: Chimay, Orval, Rochefort, Westmalle, Westvleteren e Achel; A holandesa: La trappe, que é produzida no monastério de “Onze Lieve Vrouw van Koningshoeven”) são elas: A francesa Mont des Cats (que é de monges da França mas é produzida na Chimay); A austríaca Stift Engelszell; Outra holandesa, a Zundert Trappist; E a primeira trapista fora da Europa, a americana Spencer Trappist Ale.
    Forte abraço!
    Marco Aurélio Lopes
    (Petrópolis-RJ)

  • avatar

    Joao Miguel

    February 5, 2014 at 14:12

    Muito bom texto!

    Em Portugal há resquicios desta ligação: na zona de Ourém existe um vinho rosado, o Palhete Medieval de Ourém – elaborado com as castas Fernão Pires (+-80%) e Trincadeira (+-20%), embora possam surgir outras como a Baga, Castelão, Aragonês, Moreto em menores quantidades. Os terrenos são normalmente profundos, férteis e calcários; a vinha conduzida com grande expansão vegetativa e os sistemas de poda são variados (Guyot, palmeta, em vaso); As parcelas são pequenas e muitas vezes diversas (no meio da vinha surgem árvores de fruto)!

Post a Comment

CommentLuv badge